O CAPIAU
Conheci certa vez um capiau. Chegara do interior com mulher e filho pequeno, e mais um que vinha no peso extra ainda por nascer. Era o tipo de usava sapatão roceiro, barra da calça no tornozelo, camisas que mal cobriam o cós da calça. Por muito pouco ficava vermelho, e esse ficar vermelho o mortificava. Mas não havia jeito: qualquer coisa já sentia o sangue subir à face, e por mais que tentasse esconder a vergonha que sentia por qualquer coisa, por ser diferente, por vir da roça, por falar como caipira, lá vinha a vermelhidão, e aí as piadas aumentavam!
Mas o sujeito era trabalhador! Sabia pegar no pesado, não temia trabalho por mais difícil que fosse, e por mais que parecesse pacato, tinha suas espertezas. Em pouco tempo na cidade grande, conseguia se safar das palhaçadas dos colegas, alimentava a esposa e os filhos, e já quase conseguia se mesclar à multidão dos empregados da mega indústria automobilística na qual trabalhava.
Nunca vira o mar! Nem sabia ao certo o que era o mar! Onde começava e onde terminava. Não sabia nada de suas ondas traiçoeiras, de seu balanço, de sua maresia. Ah, a maresia! Aquele perfume que embriaga! E o sal na água? O que dizer disso? Nada sabia! E de repente, chega aquele camarada, muito falastrão e o intima a compor uma pescaria em mar aberto!
Vô não!
Vai sim! Tenho que completar 20 pessoas no barco e você vai! - Intimidador.
Vô não! Os pescadores vomita toda vez que vai pra lá!
Você toma um Dramin e fica tudo bem!
Quem mora em São Paulo conhece as Rodovias Anchieta e Imigrantes e sabem que a primeira tem curvas vertiginosas e a segunda infindáveis túneis. Mas isto era em meados dos anos de 1970, e os caras desceram a serra para Santos pela Estrada Velha!! Além de curvas, buracos, a total falta de acostamento. Subida e descida pela mesma faixa: cintos de segurança? - isso não existia, bancos meio soltos, as janelas do ônibus a abrir e fechar, chegaram ao litoral já todos meio esverdeados. Tomou logo de cara, a seco, o primeiro Dramin!
O barco, relativamente grande, deu certo conforto, mas em pouco tempo os prédios sumiram de vista, e para todos os lados que se olhava só se via mar, mar e mar. Algumas gaivotas voavam alto no céu, dando rasantes de tempos em tempos, indicando os cardumes de peixes. Ondas que passavam de cinco metros, faziam por vezes o barco adernar, e os pescadores, cada um por sua vez, outros ao mesmo tempo, começam a vomitar, ali mesmo no passadiço. O piloto com dificuldades para marear, e o capiau, impávido, com sua vara de pescar, outras vezes controlando a dos amigos, nem parecia que jamais estivera em alto mar.
Passado algum tempo, metade dos pescadores pediam para voltar. Acreditavam já quase mortos pelo enjoo do mar. Ele busca no fundo do bolso, meio a contragosto, sabendo que até poderia fazer mal, e engole, novamente a seco, o segundo dramin. Por via das dúvidas, saca escondido a dentadura e enfia no fundo do bolso traseiro. Não quer se engasgar com a dita cuja. Não come nada durante todo o percurso, nem bebe. Melhor não arriscar, mas o danado do Dramin deu resultado. Guardará essa informação para o futuro – sabe-se quantos infortúnios terá pela vida, e deverá lançar mão de recursos, por vezes questionáveis, para fugir de problemas.
Ao chegar ao porto, varado de fome, ajuda a separar os peixes, e volta para casa subindo a serra se sacolejando dentro do velho ônibus, e vai pensando, que pela vida afora, às vezes é necessário ter dois Dramins, ou uma segunda opção para fugir de um macabro destino.