A solidão é fera

Na Rua do Galo, fim de linha de um subúrbio quase agrário, mora um senhorzinho solitário de cabelos encanecidos, num trecho da área projetada onde sopra uma brisa a favor, daqueles bafejos vindos das serras distantes, trazendo olor de inverno próximo com soledade antiga e longínqua. O senhorzinho caminha lento pela estrada de barro vermelho, contando os passos incertos, pensando na morte da bezerra e na sua própria morte, de repente, sem aviso, caindo fulminado por um ataque cardíaco ou investida segura do acidente vascular cerebral. De tudo ele já escutava os sinais, como na cantiga de Alceu Valença. Dor no peito, falta de ar, suor frio. “Preciso falar a sós com você”, dialogou o velhinho com ele mesmo, fazendo chacota do seu desterro. Um cara com mais de setenta não pode viver só. Até pode, mas morrer só é que preocupava.

Há mais de duzentos quilômetros dali, na grande metrópole, uma senhora sentadinha na frente da TV assistia a missa e rezava uma súplica antiga, pedindo pra ver os filhos distantes apenas a dez minutos de automóvel e ausentes há mais de uma semana. A senhora claudicava da perna e não conseguia manter a coluna ereta, o corpo marcado por feridas e infortúnios da vida. O olhar manso e conformado não escondia, no entanto, o espanto de ter concebido e educado os filhos e, no final da existência, não ter ninguém ao lado para escutar suas queixas naquela manhã domingueira de sol, e o cinzento da senilidade cobrindo seu interior. “Cada um com seu cada qual”, conforma-se a desgostosa senhora. Chora um pouco e tenta se levantar para esquentar o refogado de galinha. Lá pelas tantas, liga uma sobrinha benévola, verdade seja dita, a única parente solícita. Mesmo porque ela mesma, a sobrinha, também padece desse fenômeno social da incomunicação. A parente da senhora isolada sente-se acometida de uma percepção mínima, mas angustiante: “eu serei titia amanhã!”.

A morte é certa, mas a solidão deveria ser um mal desnecessário. “Isolamento social leva à solidão crônica e interfere na qualidade do sono, é causa de fadiga e reduz a sensação de prazer em atividades recreativas”, ensina o médico Drauzio Varella. Ele garante que o isolamento aumenta o risco de morte tanto quanto o cigarro e mais do que o sedentarismo ou a obesidade.

Há muitos anos viveu na minha rua uma senhorita de vida social intensa. Passou a existência brincando. A alegria natural de todo jovem elevada a uma dimensão inimaginável. Essa moça conhecia a arte de como enfrentar o tigre. A vivência entre os semelhantes, em torno deles, ou até dentro das pessoas, essa fera que às vezes nos acua de tal forma que a pessoa tem a sensação de estar sozinha apesar da vida social exorbitante. De repente, numa curva da floresta existencial, a onça abocanhou a moça e veio a depressão. Só, na multidão, a moça deu cabo da vida em uma terça-feira de carnaval, depois de beber um litro de vermute tinto com meio copo de veneno para rato.

Na Rua do Galo, o velho pensa que viver só é recomendável para os associais, mas não necessário. Isolado, entretanto, não se sente solitário. Apenas cansou de vestir a camisa do “eu sou mais eu”. Não é mais. Na verdade, é ele e suas mazelas, indisposições, mal-estares, disfunções e outras patologias da idade provecta, como se diz. É a “melhor idade”. Na melhor das hipóteses, excelente período para fingir surdez e ouvir as pessoas falarem mal do aposentado que mija nas calças e esquece de tomar o remédio para próstata.

Na sua casinha, a sobrinha da velha senhora desacompanhada tenta dormir, perturbada pelo som alto do vizinho. Pensa em ligar para a polícia, mas lembra que vizinhos adoram apoquentar mulheres solitárias, aparentemente indefesas, e mesmo nesta terra uma cidadã que aponta uma transgressão é sempre olhada com cisma e pode acabar alvo de represália. Política da boa vizinhança nada! Tática de sobrevivência. Engole a afronta e o desrespeito. A boa cabrita não berra, apenas busca estímulo em um dos mais de dez livros que já leu neste ano, assinado por Clarice Lispector: “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”.

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 20/02/2023
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