A lei é boa se alguém a usa com retidão

 

A lei. Que é a lei? Muitos dizem que basta cumprir a lei. Isso é verdade? Está correto esse entendimento? Tem fundamento na ciência jurídica esse ponto de vista? Não, nem sempre! É preciso ter muito cuidado com as invocações e o emprego da lei, pois nem sempre são feitos com retidão.

 

Abro a Biblia Vulgata e me deparo com a terrível acusação dos judeus a Jesus Cristo: “Responderunt ei Iudaei: Nos legem habemus, et secundum legem debet mori quia Filium Dei se fecit” (Io 19,7). O texto me é bastante comum, não porque eu seja tão versado no latim, mas pelo conhecimento de suas várias versões em português. Uma delas: “Responderam-lhe os judeus: Temos uma lei, e, de conformidade com a lei, ele deve morrer, porque a si mesmo se fez Filho de Deus” (Jo 19.7).

 

Os dizeres “temos uma lei, e, de conformidade com a lei, ele deve morrer” me fazem estremecer como advogado. As coisas não são bem assim, embora, como se vê, esse pensamento seja antigo. Isso, aliás, me lembra duas obras das quais gosto muito, Homo Juridicus: ensaios sobre a função antropológica do Direito, de Alain Supiot, e Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro, de Alysson Leandro Mascaro. As razões da lembrança, evidentemente, são muitas, mas a principal delas é a necessidade de não se confundir a lei com o direito. Lei e direito não se confundem.

 

Julgo por isso ser importante expressar bem claramente o meu ideal do que deve ser a lei e, para isso, faço minhas as palavras de Tomás de Aquino, que dizia: “Lei é uma ordenação da razão para o bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade.” Para mim, somente a lei que tenha essas características é fonte do direito. Logo, nem tudo que se chama de lei tem realmente normatividade.

 

As pessoas, não raro, de forma muito ingênua, quando não muito mal-intencionada, dizem que o importante é cumprir a lei. E por que dizem isso? Porque desconhecem que muito do que se diz por aí ser lei não o é e não tem normatividade. De forma mais simples, não sabem que nem tudo que se diz ser lei é lei de verdade. E aí as coisas se complicam.

 

Além disso, às vezes, o problema não está na lei em si, que é boa, mas na aplicação indevida, ilegítima. Daí o apóstolo Paulo ter escrito a Timóteo, dizendo: “Scimus autem quia bona est lex, si quis ea legitime utatur” (1 Tim 1,8). Quer dizer: “Sabemos, porém, que a lei é boa, se alguém dela se utiliza de modo legítimo” (1 Tm 1.8). E o texto bíblico segue, nos versículos seguintes, em longa argumentação paulina sobre a necessidade da correta aplicação da lei.

 

Em nossa ordenação jurídica, a Constituição de 1988 expressa, no artigo 5.º, inciso II, a garantia de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, o que se chama doutrinariamente de princípio constitucional da legalidade. No entanto, como foi dito acima, às vezes a lei não é lei, ou, ainda, a lei é empregada ilegitimamente, razões pelas quais é preciso muito cuidado com a ideia do senso comum de que basta cumprir a lei.

 

A lei pode ser inconstitucional. E aí? Basta cumpri-la? Não. Neste caso, tem que se insurgir contra ela e pugnar pela sua invalidade! Outras vezes, o emprego da lei é ilegítimo. E aí? Deve-se aceitar passivamente? Não, claro que não! É preciso recorrer da decisão e cassar a aplicação incorreta.