Das Minhas Lembranças 52

1980 é o início do fim da ditadura militar. Era impossível conter o grito de liberdade, que brotava em todos os lugares. As greves de 1979 sacudiram o país e abalaram os alicerces do sistema opressor.

Nos anos oitenta várias manifestações artísticas e culturais ganhavam as ruas e as mentes das pessoas. Na música, destaque para o rock nacional. Surgiam várias bandas. MPB, cinema, teatro, entre outros movimentos, indicavam que a ditadura estava acuada.

A literatura também soltou a voz, ou melhor, os textos. A poesia circulava nas mesas dos bares, ruas e praças. A criatividade de escritores e escritoras provocava agito. A necessidade de comunicar era intensa. Conheci alguns artistas de rua e de bares. O edifício comercial do Maleta, no centro de Belo Horizonte era o ponto de encontro de artistas famosos e outros nem tanto. E de alguns políticos, como José Aparecido. Milton Nascimento era outro que vez em quando marcava presença. Evaldo Martins ia de mesa em mesa oferecendo seus cartazes, com seus poemas ilustrados. Dubiel, que já era meu amigo e que morreria anos depois num acidente de trânsito numa rodovia do Espírito Santo, também oferecia seu livro de poemas aos clientes nos diversos bares e restaurantes do Maleta e de toda BH e região metropolitana.

Frequentador do Maleta desde 1975, onde conheci o Seu Olímpio, o garçom comunista, que viria receber o título de cidadão honorário de Belo Horizonte alguns anos depois e que me servia doses generosas de uísque, certa noite me mostrou o livro de Pablo Neruda, Confesso que Vivi, autografado.

A poesia veio ao encontro de novos autores e autoras na década de oitenta. Um boom como se dizia. As formas de imprimir eram muitas. Na maioria em mimeógrafos, que acabou sendo rotulada de geração mimeógrafo. Poetas marginais. Havia impressão em papel higiênico, calendários, artesanatos de madeiras, por meio de pirógrafos. A criatividade entalada se soltava de várias formas. Outro autor que deixou sua marca nos anos oitenta em Belo Horizonte foi Rogério Salgado.

O movimento nascido nos anos oitenta me levou a reunir alguns poemas escritos à partir, principalmente, da segunda metade da década de setenta, acrescidos por alguns já no início dos oitenta e imprimir o livro Nas Águas do Arrudas. Uma edição precária, com erros de digitação, porém com um pouco mais de qualidade que os mimeógrafos. Berzé fez a ilustração da capa, além de uma charge irônica em que eu carrego às costas um lápis, simbolizando as dificuldades de um escritor publicar seu livro fora da indústria cultural.

O lançamento, com uma tiragem de mil exemplares aconteceu na Pizzaria Jones, à Rua Tiradentes, no Bairro Industrial, em 1984 e varou a madrugada. Quem animou o lançamento, ao som do violão e voz, foram José Prado e José Maria, o Guinho. Claret, o dono da pizzaria me disse que foi a noite mais movimentada da casa. Depositou sobre a mesa em que autografava, uma garrafa de uísque, como brinde, além dos petiscos.

A primeira e única edição de Nas Águas do Arrudas, praticamente esgotou-se nessa noite inesquecível.

Nas águas do arrudas

nas águas do ribeirão arrudas

muda

a ideologia

muda

o canto torto

o rato morto

o sonho do poeta

sem rima

sem métrica

a paz eterna

o esperma

o amor

o odor

o grito

sufocado

engasgado

do esmagado

explorado

nas águas do ribeirão arrudas

d

e

s

c

e

m

os bolos

cais

do executivo

executivo

do patrão

da madame

(a madame caga no arrudas)

o corpo

morto

de um morador das adjacências

que sem paciência

c

ai

u

nu

n

o

arru

d

a

s

sem esperar

a época das chuvas

pois no arrudas

pode morrer

em tempos de

encheeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeennnnnnnnnnnttteeeeesssssssssss

oh poeta incompetente

onde está o ritmo

a rima

a cadência

a tônica tônica

atônica

atônito

atômico

autônimo

autômato

antônimo

autonomia

onde está?

?

já não se fazem poetas como antigamente...

o estilo

ah o estilo

(há o estilo)

afinal que paí...

digo, estilo é este?

é um estilo

à imagem e semelhança

dos dias em que viVemos

julgados

condenadoSOS

culpados

(até que nunca provem que são inocentes)

exilado

cagado

mijado

ado ado ado do do

dor dor dor dor dor dor dor

(não me condenem: eis aí a rima (apreciadores) estética)

ia me esquecendo

nas águas do arrudas

d

e

s

c

e

m

os bolos fecais

do operário

do mendigo

do homem

do menino

que canta com outros meninos de mãos dadas em frente

a televisão

“liberdade é uma calça azul e desbotada”

(este é um poema que vai pra frente

nas

águas

do arrudas)

livremente

calmamente

(rima pobre)

transportando os anseios

os não-anseios

de um povo

(“povo é abstração”)

nas águas do arrudas

(“lugar de estudante é na escola”)

(“pra pensar pensamos nós”)

(“o Brasil é feito por nós”)

(“é hora de confiar”)

(“é hora de mudar”)

nas águas do arrudas

nas águas do arrudas

por

onde

descem

os bolos

fecais

(“ame-o ou deixe-o”)

da meretrizes

da grã-fina

dos zeferinos

dos infelizes

dos psicólogos

dos filósofos

dos sociólogos

dos ideólogos

ogos

ogos

ogos

do masoquistas

dos fascistas

do padre

do camelô

do gigolô

do doto

do inquisidor

(“revogo as disposições em contrário”)

nas águas do arrudas

onde

d

e

s

c

e

m

os bo

los

fe

cais

(dos colunáveis,

dos presidenciáveis)

do marginal

do desempregado

(“o futuro a Deus pertence”)

adeus futuro

nas águas do Ribeirão Arrudas

onde há igualdade social

(ou a deles é melhor?)