Paz, irmão

- Louco!

- Bem louco, hein!

- Pinto louco, rapaz!

- Cara, seu pai era muito louco!

Pois é!

Andei "entrevistando" uns amigos do meu pai pra ouvir histórias, colher impressões, acrescentar referências, pra poder escrever sobre ele, pra um pouco além dos limites que a gente conhece.

E não é que deu que o bicho era louco! Beirou a unanimidade. Claro que tem contexto. E aquelas qualidades que todo mundo que conheceu ele sabe muito bem.

- Gente boa demais!

- Inteligente pra crl!

- Parceiro! De confiança!

- Roubava demais no truco! E o pior que ninguém sacava...

- Me ajudou muito!

- Sincero, hein! Mandava na lata, doa a quem doer...

- Grande pescador!

- Não dava muita pala, não! Mas tinha um coração enorme...

Mas o louco surpreendeu. Será? Pensando bem...

Não é de espantar mesmo não. Meu pai era Vida Loka mesmo!

No sentido: Louco pela Vida!

Um mix de Tião Carrero e Pardinho, Dom Quixote, Nelson Gonçalves, Raul Seixas, Degas, Pena Branca e Xavantinho, Benito de Paula, Tonico e Tinoco, Originais do Samba.

E Lobão: "Melhor viver dez anos a mil que mil anos a dez!"

Tirava férias sempre em novembro.

- Vâmo pra praia!

- Qual?

- Peraí, que tô escolhendo aqui no mapa...

- Quando?

- Agora, ué! Arruma a mala, que já tâmo saindo...

- Mas já tá tudo certo? Alugou casa?

- Chegando lá a gente vê...

E chegando lá é que ia procurar imobiliária pra ver onde ia ficar. E sempre deu bom.

Em Matinhos, foi numa edícula, no fundo de um bar. Todo mundo se apaixonou pelo ajudante do dono do estabelecimento: Billy, o ratinho branco de estimação. Limpador de balcão: responsável por secar tudo o que respingava dos copos. E não ficava chapado! Trabalhava firme até o último freguês...

Em Itanhaém, ficamos numa casa do lado do hospital. Tinha um murinho e um gramado. Ideal pra sentar e tomar uns gorós com a minha vó, a sogra dele (outra 'pancada", do mesmo naipe), companheira inseparável de gole, comidas exóticas (que os dois preparavam juntos e só eles tinham coragem de comer; e comiam com gosto), trapalhadas e afins.

O problema é que tinha um formigueiro.

Quando sentiu, tava com a costas tomadas. Levantou rasgando a camisa.

- Joga a vodca, Dona Íris! Ligeiro!

- Chega, Dona Íris, vai acabar com a vodca!

Final de ano, confraternização da Sanbra em Três Lagoas, na fazenda de um cliente, que acabou virando um grande amigo dele.

A paixão pelos sapos já contei na história dos "velórios animados" (pra quem ficou curioso, tá no blog: sextoutextou.blogspot.com).

Bora ver os peões capando os bois. Quem caiu pra dentro pra "ajudar"?

Não contava com o bezerro solto que não curtiu nada ver o maluco mexendo com o pai dele. Levou uma cabeçada na coxa. Voou sem bater asa! Estirou, rompeu, arregaçou...

Sessenta dias sem andar!

Levou meu cunhado pra pescar. Pegaram peixes e répteis!

- Cara, só acreditei porque tava lá e vi! E ainda chego a duvidar do que vi! Na Lagoa São Paulo, três horas da madrugada, o doido se jogou do bote pra dar o bote no jacaré! Brigou com o bicho, abraçou pelas costas, imobilizou, finalizou...

E o almoço foi Wally a passarinho!

Ah, tinha um avental, com um pescador desenhado. Baixinho, gordinho, sorridente. Fofo.

Ele pediu pra minha vó, aquela que também adorava uma arte, costurar, com meias, uma genitália - isso mesmo - na parte de dentro do avental. Até pintou pra ser mais realista.

Dia de churrasco ele usava a indumentária. A gente só ficava esperando acontecer.

- Esse calor tá me matando! Essa brasa tá quente demais!

E começava a se abanar. Quando levantava o avental, "as partes" ficavam à mostra.

Quem já sabia se acabava vendo a reação de quem nunca tinha visto.

E os bordões?

- Alcides Rosseti, o menino das meninas!

Quando se apresentava ou era apresentado. Minha mãe adorava. Mas sabia que ele era só o Ci da Marina mesmo...

- Numa ocasião, em 1927...

Esse era pra começar a contar uma história.

- Sui Generis!

Quando via alguém "fora dos padrões" (dos critérios definidos por ele mesmo) ou qualquer coisa "diferente" (dos mesmos parâmetros estabelecidos).

- Dinheiro foi feito pra rodar! E se é uma merda, eu é que não quero andar fedendo...

Sobre a recusa em acumular mais que o necessário.

- "G" de Jesus, Dona Marina!

Explicando pra minha mãe o significado do símbolo na Maçonaria. E ela acreditou...

- Pincha fora, lá no terreiro!

Pra acabar com discussões ou disputas entre irmãos.

- Vâmo comer e beber, que nóis tudo vai morrer!

Aqui vou me atrever a ajustar:

- Vâmo comer e beber e beber e beber, que nóis tudo vai morrer!

Problema com bebida? De jeito nenhum! Sempre se deram muito bem...

- Paz, irmão!

Esse deixava minha mãe muito pistola. Ele usava quando ela reclamava que ele já tava naquele grau e começava o sermão...

Pra nós acabou virando definição da situação em que o cidadão transcendeu. Esse também incorporei e costumo usar com certa frequência.

Ah, saudade dos sábados, quando a gente sentava pra tomar umas Brahmas (só Brahma, no copo americano) e comer arroz de forno e lasanha (de presunto e queijo pra geral e a especial, de berinjela, pra nora e pro genro).

Ah, saudade do pai presente e dos presentes do pai.

Pintou meu quarto de azul. Pintou porque eu pedi, quando viemos morar aqui, em 81, na casa em que ele tinha morado desde criança.

Voltar pra casa talvez tenha sido uma das maiores realizações e alegrias da vida dele. É que ele morava aqui com meu avô e acabaram tendo que mudar por questões de herança. Precisaram vender pra dividir entre os irmãos do meu avô, quando o Nôno morreu.

Recomprar a casa foi uma grande conquista. Pintar o quarto de azul foi a cereja do bolo.

E teve tanta cereja!

Um belo dia acordei e tinha um Ferrorama montado no meio do quarto. Pensa na felicidade da criança. Depois veio o Autorama (com Brabham e Ferrari), a bicicleta (Caloi Extra Light, de alumínio), o Colossus (uma camionete de controle remoto que até acendia os faróis, mas precisava de 13 pilhas pra funcionar).

Ele me deu um R2-D2! O droide de Star Wars. A Estrela lançou junto com o "O Retorno de Jedi." Aí eu virei o Luke Skywalker!

Eu gostava demais de futebol de botão. E jogava muito. Campeão da Copa Libertadores da Vila Maristela!

Inventei de colecionar os times. Aí comecei a pegar dinheiro "emprestado" da carteira da minha mãe, sem ela saber.

Claro que o flagrante era questão de tempo.

- Rapaz, é o seguinte: quando você quiser alguma coisa, peça! Nunca pegue nada do que é dos outros. Nada!

- Peça! Se for possível, a gente compra. Se não for, a gente espera até poder comprar.

E me levou pra Casa Akaki, o paraíso das crianças de Prudente. E voltei pra casa com todos os clubes da primeira divisão do Brasileirão!

Tá entendendo um negócio desses?

Então né, eu mesmo só fui entender quando ele contou as histórias dele.

Com nove anos, às quatro da manhã, já tava trabalhando na peixaria. Daí o apelido que virou marca registrada: Sardinha!

E tudo que ganhava era entregue na mão da minha avó. Quando conseguiu juntar uns troquinhos, comprou uma bicicleta. Apanhou e foi obrigado a vender.

Adolescente, conseguiu comprar uma chuteira. Chegou machucado do jogo. Apanhou e teve que vender.

Depois, quando ninguém mais podia levantar a mão pra bater, virou o centroavante do time do bairro. Respeitadissimo: rápido, habilidoso e matador na área.

Certo dia, chegou em casa com um violão. Tocou uma noite só. O instrumento amanheceu todo quebrado.

Por essas, da pra concluir que a nossa sorte foi ele querer fazer pra gente tudo o que não fizeram pra ele, poder dar pra gente tudo o que não deram pra ele, tratar a gente do jeito que ele sempre sonhou ser tratado: com amor, respeito e cuidado.

E a vida tava boa. Depois que saiu da Sanbra, ele começou a construir casas pra vender. Foi mais uma realização. Entrou pro seleto grupo das pessoas que fazem o que gostam. E fazem bem. E ganham grana com o que fazem bem feito. E o cidadão ganhou grana...

Até que veio o famigerado Plano Collor e ferrou com tudo. Dinheiro do povo todo confiscado. Ninguém mais comprava imóvel. Quebrou muita gente. Inclusive ele.

Mesmo assim, quando fui pra faculdade, não me deixou trabalhar.

- Estuda direito, se forma, aí se vira. Se a coisa apertar durante o curso e não tiver jeito, você vai caçar serviço.

Não precisou...

Aí veio a aposentadoria. Tudo errado. Sempre contribuiu como autônomo e empregado. E o INSS considerou que a ocupação principal era a de autônomo pra calcular o benefício, que ficou em pouco mais que o mínimo, mesmo com contribuições pra receber cinco vezes mais.

O perrengue foi comprido, até ganhar na justiça. Bora se reinventar, então!

A prima da minha mãe tinha uma máquina de tricô encostada. Meu pai simplesmente começou a fazer blusas de tricô na máquina. Fez uma do São Paulo pra mim, com as listras horizontais em vermelho e preto no peito e na gola. Peça única, de valor inestimável.

E minha mãe simplesmente ia pro centro, vender a produção. E assim bancaram a faculdade da minha irmã.

Quando finalmente saiu a revisão do benefício, a situação se estabilizou.

Até que...

Cinquenta anos de tabagismo em associação com uma hipercolesterolemia detonaram a bomba-relógio.

E já se vão dez anos sem Sardinha...

Então só ficou a saudade...

Naquela mesa ele sentava sempre

E me dizia sempre o que é viver melhor

Naquela mesa ele contava histórias

Que hoje na memória eu guardo e sei de cor

Naquela mesa ele juntava gente

E contava contente o que fez de manhã

E nos seus olhos era tanto brilho

Que mais que seu filho

Eu virei seu fã

Eu não sabia que doía tanto

Uma mesa num canto, uma casa e um jardim

Se eu soubesse o quanto dói a vida

Essa dor tão doída não doía assim

Agora resta uma mesa na sala

E hoje ninguém mais fala do seu bandolim

Naquela mesa tá faltando ele

E a saudade dele tá doendo em mim

Naquela mesa tá faltando ele

E a saudade dele...

Tá doendo em mim...