RESTOS DE CARNAVAL

RESTOS DE CARNAVAL - Uma crônica para Clarice Lispector.

Amélia Luz

Tanto tempo se passou e não consigo esquecer aquele nosso carnaval. Éramos tão puras e inocentes! Somente agora, depois de quase quatro décadas, venho relembrar com saudade tudo o que aconteceu naquela tarde carnavalesca em Recife. Para lhe dizer a verdade o papel crepom que sobrou da minha fantasia “Rosa”, não foi por acaso. Vendo o seu desejo de se fantasiar mamãe resolveu comprar dobrado pensando em fazer para você uma fantasia igual a minha, de surpresa, é claro! E você ficou uma linda rosa.

O que até hoje muito me entristece foi vê-la ao lado da agonia da sua mãe, justo naquele dia, toda vestida de pétalas cor-de-rosa. Depois, correndo afobada até a farmácia em busca do remédio salva-vida. Penso na sua tristeza, a folia passando e você ainda sem pintura, entre a dor e o prazer, entre o remorso e a alegria. O medo das máscaras que a ruborizavam.

A vida foi impiedosa para você naquele marcado domingo e depois que você se mudou e nos separamos só restou para mim os espinhos daquela rosa.

Foram tantas as amarguras que só agora tenho a oportunidade de voltar a lhe falar. Perdi meus pais num acidente, fui jogada na casa de uma tia, depois fui para um internato de meninas onde consegui me formar professora de Língua Portuguesa. Com minhas turmas eu viajava nos seus textos. Parecia-me vê-la pálida, ainda sem pintura, lutando contra a morte, embora tão pequena. O mundo deu muitas voltas. Acompanhei pelos jornais e revistas toda a sua magnífica trajetória literária. Sentia-me orgulhosa por vê-la consagrada escritora, de fama internacional.

Pensava quem seria hoje você? Onde estaria aquela menina que um dia eu e minha mãe resolvemos presenteá-la com a realização de um sonho-fantasia? Estaria ainda viva, dentro da grande Clarice Lispector?

Entre serpentinas e confetes realizamos nossos desejos nas ruas da pequena cidade. Posso ainda ver a sua expressão de amargura escondida na boca fortemente pintada de vermelho, forçando um riso que não vinha.

Nunca mais me fantasiei. Escondi a folia que havia dentro de mim e em todos os carnavais eu me recolhia triste vivendo a minha e a sua tragédia. Devo lhe dizer, depois de tanto tempo, que aquele belo menino de 12 anos que lhe parecia um rapaz, o galanteador que a descobriu na folia, hoje é o meu velho marido, com quem eu dividi a vida. Mesmo muito doente, manda-lhe um abraço, dizendo ter guardado na retina toda a sua beleza de rosa em botão. Quanto aos confetes, ele disse ter guardado para derramar nos cabelos da menina mais bonita que encontrasse, mesmo que fossem sem frisos.

Quando li na sua obra “Restos de Carnaval,” pude perceber que havia um elo muito forte entre nós, apesar da distância. Foi então que reencontrei minha antiga amiga de infância nesta longa viagem.

Pensei, “Mas a ausência inútil da terceira (perna) me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem nem sequer precisar me procurar”. Senti no fundo do peito uma ponta de vaidade. Quem sabe seria eu a sua terceira perna perdida? Dei boas gargalhadas, ali sozinha, um riso quase infantil, mas com um dos seus livros nas mãos.

Corri até o espelho da sala. Minhas rugas desapareceram de repente, dando lugar a um rosto de menina deixado para trás há muitos anos. Estava pintada, pelas habilidosas mãos de mamãe, como naquele domingo de carnaval. Resolvi então lhe escrever-lhe esta carta. Qualquer dia desses nós estaremos juntas outra vez, quem sabe, fantasiadas de anjos, no bloco dos sujos, ou melhor, dos limpos de coração, no reino da felicidade. Lá não há enfermos, nem dores, nem lutas. Nos caminhos eternos estaremos aliadas para sempre, andarilhas despertas para uma nova vida, com ou sem folia.