MEU NETO – O MENINO DAVI – E SUAS PEDRAS

                 Chego a Brasília, meu filho me espera. Logo encontrarei meus netos, Daniel e Betina.

               O profetinha do vovô devia ter ali pelos seus cinco anos, ligeiro, inquieto, sempre disposto a uma farra de menino. Tinha descoberto as pedras.

           Meninos têm suas fases. Eu imagino que, nesta geração, temos a fase da Galinha Pintadinha, das músicas, depois carrinhos, dinossauros, pedras e futebol.

               Daniel agora, enquanto escrevo essas memórias, está na fase do futebol. Pensa nisso, fala só sobre isso, conhece todos os times da Europa e da América do Sul, diz quem são os jogadores. Projeta sua futura carreira como um craque da seleção brasileira. Assistimos o início da Copa de 2022 juntos. Ficava ali perguntando sobre os jogadores das seleções e ele me dizia tudo. Naquela oportunidade a coisa foi diferente.

               Cheguei preparado para contar histórias dos dinossauros, onças e jacarés do Pantanal, inventar proezas nas caçadas com cavalos, cachorros e carabinas, imaginar histórias com os bandidos da minha infância, os Baianinhos, o Camisa de Couro, mas, que nada, a fase era das pedras.

               Tive que me reinventar, mas não me colocava bem na situação. O negócio do profeta era jogar pedras. Estávamos só nós dois no parquinho da Quadra, Asa Norte, e ralhei com ele.

               - Daniel, não pode jogar pedras aí. Daniel, não pode tirar as pedrinhas do canteiro.

               Não adiantava. Decidi usar da minha autoridade de vovô. Peguei no braço do neto e segurei firme.

               - Vou contar para o meu pai que você está me batendo. Ameaçou solenemente e me deixou sem ação. Só me falta isso, esse moleque falar para o Lucas que estou batendo nele.

               Fiquei imaginando como dar a volta por cima naquela situação.

               - Daniel, vamos subir, o vovô vai contar uma história de um menino que gostava de jogar pedras.

               - Quem é ele? Perguntou interessado.

               - Davi.

               - Ah, vô, eu já conheço essa história.

               - Não, mas eu sei de coisas que não te contaram. Vamos lá. Ele aceitou.

            Enquanto subíamos ele exigia a antecipação da história e eu imaginava que teria que apimentar a epopeia bíblica. A história teria que ser vibrante.

            Chegamos. Contei a história, mas vi que não iria funcionar. Falei das pedras, ele se mostrou mais interessado.

            Então, cantei. Vou te ensinar a história cantando.

             Busquei a letra lá no fundo do hipocampo, sei lá, acho que foi lá que peguei a letra da canção “Rapaz Davi”.

“Só o rapaz Davi

Com sua funda em mãos

Só o rapaz Davi

Rapaz de oração

Oh, só o rapaz Davi

Lá, no pequeno rio

Só o rapaz Davi

Cinco seixos pra si tomou

E uma pedrinha pôs na funda

Então girou, girou

E uma pedrinha pôs na funda

Então girou, girou.

Girou, girou, girou, girou, girou, girou, girou

E uma pedrinha foi para o ar

E o gigante veio ao chão (e o gigante veio ao chão)

E o gigante veio ao chão

Sim, veio ao chão.”

             Deu certo. Ele se animou, e cantávamos, cantávamos e cantávamos. Aliás, os dias que passei lá foram de cantorias de uma única música, “Rapaz Davi”.

                 Estava salvo, conquistei meu neto, a conversa fluía, bom demais.

              No sábado à tarde, vindos da igreja e já tendo almoçado, todos queriam um descanso, mas o Daniel não queria. Resolvi me animar.

               - Daniel, vamos fazer um teatro.

               - Como assim, vovô?

               - Eu vou ser o rei Saul, a tia Silvana vai ser o povo, seu pai o gigante e você o menino Davi.

               Pronto, euforia total. Tratei de convocar os atores e figurantes, preparar o texto, ensaiar um pouco para a apresentação definitiva da peça.

               O Lucas, meu filho e pai do menino Davi, não aceitou o papel. Queria ficar deitado no sofá da sala, preferia ser o rei Saul que teria fala curta e não necessitaria fazer qualquer movimento.

               O povo, a tia Silvana, não queria servir como figurante, afirmando que não daria conta do papel.

               Depois de muita conversa e pressão do menino Davi, o povo aceitou participar e troquei o papel com o rei Saul. Enfim, eu seria o gigante.

               A peça transcorreu bem, com o inconveniente de que eu precisava cair estrondosamente no chão ao final do último ato. Foram várias quedas, até que todos se deram por satisfeitos.

               Enfim, todos sossegaram, eu estava muito satisfeito com a autoria e meu papel como ator de teatro, o menino Davi havia aprendido mais da história e tudo acabaria bem se nós apenas continuássemos cantando a música “Rapaz Davi”.

               Na quietude dos adultos ali na sala, eis que o menino Davi aparece repentinamente e agora com o estilingue na mão, a coisa era real, um meião de futebol com algumas pedras no fundo e o meu herói girando e girando, cantando o refrão:

E uma pedrinha pôs na funda

Então girou, girou

E uma pedrinha pôs na funda

Então girou, girou.

               Aí, apavorei, a funda do menino Davi girava bem próxima de uma cristaleira de vidros muito finos, copos e taças, desejei que o ele realmente acertasse as pedras na testa do gigante Golias, eu, mas a cristaleira não, ia ser caco para todo lado, sei lá o que fariam a Esther, minha nora, e o rei Saul.

            A história tornara-se real, a emoção a flor da pele, eis que se levanta o rei Saul e toma a funda do menino Davi, sob protestos. Mas rei é rei, tem que ser atendido.

               - Vem cá, Daniel, vovô vai contar outra história.

               Sentei, respirei e perguntei:

               - Que tal uma história de dinossauros?