Hora do Tudo ou Nada
O sonho de Ana Carolina sempre foi ser médica, praticamente nasceu com esse desejo e nem sabia mais dizer por que tinha tal vontade. Era simplesmente parte de si, algo que a fazia ser ela. Já desejou ser bailarina há muito tempo, mas foi algo rápido e momentâneo, nem ousava contá-lo.
Talvez só tenha tido essa vontade por causa do mundo sexista responsável por associar meninas a princesas e bailarinas. Como ela não conseguia ser líder nem de trabalho em grupo na escola, nunca foi muito chegada à ideia de ser estadista. Por outro lado, a relação dela com as artes era muito mais harmônica e apaixonada, portanto, nesse mundo binário, claramente a menina era a bailarina.
Tão logo cresceu e abandonou essa visão em preto e branco, encantou-se com a medicina. Por quê? Já disse que não lembrava! A única coisa de que se lembrava era do desejo de fazer diversas especializações, até o momento não se decidiu por uma. A verdade era que o conhecimento era fascinante e amaria estudar de tudo um pouco.
Ana Carolina sabia que esse curso era muito concorrido, obviamente. Porém sempre acreditou no esforço e dedicação aos estudos, mesmo que demorassem algumas tentativas, conseguiria no fim. Seus pais sempre a incentivaram e jamais insinuaram a necessidade de um plano B. Durante toda a sua vida, apenas esperava o grande clímax conhecido como vestibular. A jovem jamais planejou nada para o pós faculdade, sua versão médica do futuro precisaria encontrar algum outro sonho.
Como o tempo passa para todos, logo atingiu a idade adequada para realizar esse tipo de prova e não hesitou em começar a estudar. Pegou alguns livros na biblioteca da escola e começou seu trabalho. Infelizmente, foi extremamente decepcionante. Ela sempre foi capaz de estudar bastante em situações de necessidade, mas, por algum motivo, não estava conseguindo se concentrar. Foram semanas com essa culpa corroendo a alma dela.
Ana Carolina se sentava na cadeira, abria o livro, começava a fazer alguns exercícios e logo se distraía. Era terrível! A culpa logo a invadia, junto com o desespero. Sabia que desse jeito jamais conquistaria uma vaga para o curso mais concorrido do país em nenhuma universidade. Era seu sonho indo por água abaixo. O que faria? Procuraria um plano B com nota de corte menor? A jovem não poderia parar de estudar e acabar sem curso e sem trabalho.
No mundo competitivo em que vivia, só havia vencedores e perdedores. Fosse o que fosse a causa da sua distração, ela não poderia deixar que estragasse sua vida. Ser médica era a razão de sua existência, por que seu sonho não era o suficiente para dar-lhe concentração e estudar ao menos 4 horas diariamente além da escola?
Ana Carolina tentou ser rígida consigo mesma, porém não demorava até estar vendo vídeos aleatórios no YouTube. A sensação de perda de tempo não era o suficiente para prendê-la ao livro. A jovem só queria chorar e pedir ajuda. Haveria remédio para o seu mal ou jamais conseguiria atingir o nível de dedicação necessário para garantir um lugar em medicina? Ela tentava não pensar o pior…
Enquanto estava simplesmente estragando o seu futuro em vez de estudar e empenhar-se, vários outros demonstravam dar duro e isso desesperava-a. O que seria de si? Não podia ficar parada e, obviamente, o jeito tradicional não estava funcionando. Talvez caso se distraísse um pouco resolveria sua agonia.
O tempo estava contra ela, era contagem regressiva para a data da prova. Por isso, não podia perder tempo. Até sua distração precisava ser estudo, por isso começou a ler clássicos da literatura. Um bom livro seria o suficiente para descansar a mente, ou assim esperava, e estaria também estudando português e história. Além disso, boa parte dessa bibliografia estava em domínio público, disponível para baixar gratuitamente na internet.
Ana Carolina olhou a lista obrigatória de livros de provas anteriores de diversos estados, só para ter uma ideia dos começos possíveis. Era uma mistura de clássicos e contemporâneos. Ou seja, nem assim adiantaria. Leria tudo do passado e esqueceria do presente! Ela se sentava para ler, pensando que precisava esquecer esse desespero e concentrar-se em algo, mas a leitura era muito difícil pela confusão em sua mente. Não conseguia evitar as lágrimas.
Precisava parar de ler e respirar fundo, ou de nada adiantaria aquela pequena diversão. Pensou em assistir ao noticiário, pois também era um ponto importante para a prova, talvez a televisão fosse mais eficiente em desligar sua mente. Era mais fácil absorver a programação da telinha do que as palavras das páginas, então absorvia mais o conteúdo, contudo sentia logo a avalanche de pensamentos estragando seu estudo improvisado.
Começava a caminhar em desespero, já dando adeus ao seu futuro. Era simplesmente impossível de suportar. Se não ingressasse na faculdade, além de correr o risco de não atingir uma renda suficiente para o próprio sustento, perderia uma parte de si. Teria uma vida mecânica de alguém fracassado. Ela já não teria amor à existência, não enxergaria uma causa pela qual lutar.
Já tinha passado alguns meses quando seus pais perceberam que algo não ia bem. Sempre confiaram em suas habilidades e responsabilidade, por isso nunca a vigiaram tanto no quesito estudo. Ela sinceramente preferia que fossem mais severos e ficassem cobrando, talvez assim não cairia nesse vício da procrastinação.
Suas crises de choro e nervoso, além de demonstração de preocupação com a chegada da prova, mesmo ficando quase o dia inteiro no quarto trancada, supostamente estudando, foram o chamariz da atenção. Assim que perguntaram o problema, revelou a dificuldade em estudar e pediu ajuda. Ana Carolina devia estar doente, não era possível! Qual seria o motivo de não conseguir estudar como uma pessoa normal?
Simplesmente não podia aceitar o destino de ser uma fracassada nessa vida. Ao menos não por ficar perdendo tempo em vez de estudar. Naquela altura, só havia três coisas capazes de ajudar. Quer dizer, ao menos ela pensava que uma delas seria o bastante. Meditação, terapia e religião, se nada disso não fosse capaz de acalmar sua mente e permitir que se concentrasse, estaria perdida.
Ela nunca teve vontade de fazer terapia ou meditação, apesar de seus pais fazerem a maior propaganda de ambos. Quanto à religião, Ana Carolina tinha sim sua fé, porém não era praticante. A ausência de contato com tudo isso era a esperança restante, afinal era um remédio novo. A última chance de conseguir voltar a mergulhar nos livros teóricos e atingir uma nota suficiente para o curso.
Seus pais pareciam confiantes de que alcançaria logo o ritmo de outrora, na verdade todos os seus conhecidos pareciam, entretanto os outros certamente diziam da boca para fora. Já ela, começava a pensar em uma outra oportunidade. Deveria existir algum curso suficientemente interessante e com uma nota de corte acessível. A jovem sabia que seu objetivo era inatingível naquele momento. Seu sonho tinha queimado e restava acudir a sua felicidade.
Não demorou para que as sessões com o psicólogo começassem, e logo foram adicionadas aulas de yoga. Ela sentia-se imensamente privilegiada por poder usufruir de todo esse tratamento especial, enquanto outros não tinham acesso nem aos seus livros. Essa constatação só aumentava sua culpa.
Felizmente, essas duas medidas surtiram efeito e Ana Carolina começou a sentir-se mais calma e menos desesperada. Já avançava bem mais nos estudos e tentava incluir pausas entre as revisões, na tentativa de não cair na tentação da distração.
Restava apenas a última opção, que nenhum dos seus pais sequer sugeriu, na verdade. Ela nem sabia como sua fé era tão maior que a deles a ponto de cogitá-la por si mesma. As religiões não eram supostamente hereditárias? Insistiu bastante na orientação divina e eles não acharam má sugestão. Planejaram uma ida a Nova Trento, lar de Santa Paulina, porque pensavam ser uma boa ideia sentir novos ares e assim a jovem ficaria em paz pensando ter tentado de tudo.
Diante de toda essa cultura ou não, Ana Carolina continuava sentindo-se insegura. Sabia que a posição geográfica não influenciaria na ajuda que receberia em suas rezas, mas era simplesmente incrível conhecer aquele lugar cheio de história. Esperava que conseguisse voltar dali mais calma e concentrada, pronta para encarar horas rígidas de estudo. Afinal, não havia escolha.
Assim como ela, muitos enfrentavam essa mesma dificuldade e, diferente dela, não fariam nenhuma dessas coisas. O sistema vigente de ingresso nas universidades era muito injusto e cruel, mas era o único. A prova era apenas um pedaço de papel inofensivo, ela precisava aprender a domá-la em vez de deixar-se ser domada.