Se é Natal...
O vestido era azul, o meu e o de minha irmã. Naquela época nos vestíamos iguais, quase iguais. A diferença ficava num pequeno detalhe na manga, na gola, ou num bordado a mais. O carro uma Kombi vermelha e branca. Eu não gostava de andar de Kombi, sentia nervoso do ruído do motor, do eco que fazia no interior e da sua cara achatada. A Kombi era feia, mas o vestido era bonito. Era noite de véspera de Natal, mais um Natal como tinham sido todos, não fosse pelo que senti ao entrar na Kombi vestida de azul... “mas é Natal de novo?”... foi a minha primeira sensação de que o tempo, quando quer, é imperdoàvelmente veloz. Na minha mente de menina estávamos prá lá de adiantados, chegaríamos cedo demais para a ceia, mas aos poucos fui entendendo. Minha mãe carregava uma sacola cheia de pacotes coloridos, meu pai fumava enquanto dirigia pela avenida Brasil, e as cinzas caíam no meu colo... o meu vestido!... minha irmã calada olhava pelo vidro, séria e tão bonita. Eu olhava prá eles e entendia, estávamos mesmo indo prá casa de meus avós paternos, onde toda a família se reunia para a ceia de Natal. A bacalhoada, e eu não tinha aprendido, ainda, a gostar de bacalhau, a gostar de couve, de cebola, de batata cozida e de azeite. Eu me contentava com o ovo cozido e o sal. Quanto mais nos aproximávamos do bairro onde ficava a casa dos meus avós, mais escura a noite ficava. Não me recordo de luzes piscando nas janelas nem de árvores luminosas pelas calçadas, só dentro das casas elas piscavam. O Natal deixava a rua vazia e escura, mas a casa de minha avó cheia e iluminada, que, apesar do bacalhau, cheirava a azeite com a mesa longa e farta de comida e gente. Vozes prá todo lado e as mãos trêmulas daquela senhora calada a tocar o rosto dos seus passarinhos que, naquela noite, voavam de volta pro ninho. E trocavam presentes, trocavam abraços, palavras e farpas, bebiam vinho tinto e tinha que ser do Porto. Ouviam Fado, ouviam Vira e a Missa do Galo, mas cantavam pouco e comiam o bacalhau, aletria, arroz doce, e eu só comia o ovo.
Um tempo depois fiquei sabendo, pasmada, que no Natal se comia também peru, presunto, farofa e arroz de forno, mas todos bebiam o vinho de um bom porto.
Hoje não me espanto mais com a proximidade do Natal, não me aborreço mais se cinzas caem sobre o meu vestido, seja ele de que cor, e luzes piscam prá todo lado... mas se, na consoada, não tiver bacalhoada, prá mim não é Natal. Adoro bacalhau, como a couve, a cebola, a batata cozida, tudo regado com muito azeite e vinho do porto. Ainda posso voar pro meu ninho, só não como mais o ovo.