A BENZEDEIRA E O JORNALISTA

Há dez anos tive a luminosa ideia de fazer uma reportagem para o jornal Diário do Norte sobre os trabalhos de curandeirismo de uma benzedeira de Barro Alto. Dona Laura. Uma idosa muito magra e de olhos tristes, que na época havia vivido 74 anos. Ela mora desde 1980 numa pequena chácara, distante 2 km da cidade. Cheguei à sua casa na companhia de Ludmila, uma amiga que trabalhava numa rádio local. Demorei algo como uma hora, conversando, bebendo café, fazendo fotos, vendo a benzedeira em seu ofício, na intimidade de sua morada, de paredes mal pintadas e mobília já desgastada.

A matéria foi publicada em julho de 2013 e foi um sucesso de público. Dez anos depois ainda continua sendo a mais lida da história do jornal. Há seis anos reproduzi o material no meu portal de notícias, o Goiás Total, e o resultado não poderia ser outro: campeão de acessos e comentários. Não satisfeito, republiquei na minha página no site Recanto das Letras. Outra avalanche de leituras e interações. Somando todas as plataformas, o texto já superou 300 mil leitores.

Há dez anos vivo a sina de receber todas as semanas ligações telefônicas, mensagens de WhatsApp, e-mails e comentários na página do Recanto das Letras. São pessoas de várias partes do Brasil, buscando saber mais informações sobre Dona Laura. Transformei-me em um intermediário. Sou a ponte que leva até a fonte milagrosa. Querem a benção dela para problemas como úlcera, câncer, crise no casamento, dor de ver filho nas drogas. E outras dores mais. Muitos ligam achando que estão falando com a própria benzedeira. Minha paciência vem sendo testada no curso da última década.

Desde que meu caminho se cruzou ao de Dona Laura tenho um tipo de missão: receber contato de gente de Minas Gerais, Paraná, Rondônia, São Paulo. Todos eles desabrigados dos milagres do sistema público de saúde, buscando o que julgam ser a solução para seus problemas. A mulher de corpo surrado pelo tempo é a última fonte de esperança para esses desafortunados. Algumas histórias realmente me comovem. São pessoas que estão na fronteira entre o desamparo e o desespero. Desenganadas pela ciência dos homens.

Na reportagem eu contei como é o ritual de benzimento. “Para benzer uma pessoa, Dona Laura segue um ritual: fecha a porta da sala e, sentada numa cadeira, envolve o pescoço do ‘paciente’ com um cordão branco trançado, que ela chama de Cordão de São Francisco. Acende uma vela e, com um terço na mão, balbucia algumas palavras. Finda essa parte, ela segue para a preparação dos medicamentos. Tudo remédio do mato, ela conta”.

Descobri muito sobre a saga de Dona Laura. Muito além do que colhi no dia da reportagem. Na cidade de Barro Alto ela é olhada com desconfiança, é tida como uma mulher misteriosa, que fala com espíritos. Em uma comarca tão católica e tão evangélica, pessoa como Dona Laura é considerada uma aberração. É socialmente exilada. O que muitos deles não sabem é que na sua modesta propriedade chega sempre uma romaria de desvalidos. São doentes de corpo e de alma batendo à sua porta em busca de cura. Alguns viajam até 2 mil quilômetros apenas para esse propósito. Fiquei sabendo que uma senhora de Curitiba foi até Dona Laura duas vezes. A primeira em busca de uma alguma graça. A segunda foi uma visita de gratidão: para ajudar a reformar a chácara onde a idosa vive, ao lado de cachorros e araras.

Hoje, Dona Laura está com 84 anos. Nada sei da sua saúde e de seus afazeres no momento. Não sei se ela se lembra que um dia estive lá, colhendo seu depoimento para uma matéria de jornal. Sei que a vida dela mudou um pouco a partir da minha visita. Ela passou a receber mais pessoas para benzer e até alguns benefícios por conta da reportagem. Sei também que a minha vida se transformou a partir do encontro que tive com ela. Todas as semanas a imagem dela surge na minha vida. Toda semana eu penso nela. Toda semana eu sei um pouco das dores de gente que nunca vi na vida. Gosto de pensar na ideia de que enquanto eu estava lá ela secretamente tenha feito algum tipo de benzedura, condenando essa reportagem a nunca conhecer o pó do esquecimento.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 06/02/2023
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