O QUEBRA-CABEÇAS

Quando eu ainda era muito pequeno,meu pai trabalhava numa empresa de serigrafias que confeccionava os tão falados quebra-cabeças.Por conta disso,ele não costumava comprar outros tipos de brinquedos para mim.Trazia sempre nos tempos de natal e aniversários quebra-cabeças com paisagens de todos os tipos.Começou com os de cem peças e quando ele me deu um de mil peças fiquei muito ansioso para saber a figura que formaria ao juntar aquelas milhares de partes.Como eu já era craque no brinquedo,fui formando,avidamente,uma paisagem natural onde havia uma ilha maior no meio dos arrecifes com um coqueiro único retorcido no centro;uma maravilhosa baía com vegetações rasteiras,próprias da beira-mar,contrastava com a beleza de uma escuna maravilhosa atracada nos arrecifes provocados pela briga constante do mar com as chapadas das falésias;umas gaivotas e uns outros pássaros estranhos figuravam na paisagem.Porém,fiquei muito frustado .Faltou uma peça e era justamente a que tinha a parte do casco vermelho da escuna.Essa peça teria que ter o nome do navio.O início do nome tinha na parte final da peça vizinha,mas,não dava para saber ao certo se o nome do barco começava com "a" ou com "o".Podia ser qualquer dessas duas letras.Depois disso perdi a vontade de montar quebra-cabeças,mas,esse momento da minha vida eu me lembro muito bem,pois,teve a perda repentina do meu pai e ele não teve tempo de me trazer a peça que faltava.

Essa frustação perdurou na minha vida.Sempre faltava alguma coisa em tudo o que eu fazia e os outros se irritavam com o meu perfeccionismo exagerado.

Formei-me em jornalismo e fui trabalhar numa revista que destacava as agências de viagens e os lugares paradisíacos.Em pouco tempo galguei degraus que me elevaram ao posto de redator/editor chefe.Tudo se passava sobre os meus auspícios no âmbito da revista.Assim,mesmo sem faltar nada,os repórteres subordinados tinham que repassar tudo até que de repente,numa dessas repassadas,tive um estremecimento.Vi a mesma paisagem do antigo quebra-cabeça.Só não tinha aquele navio do quadro e me lembrei do que o meu pai disse:

------ Filho,não se preocupe que vou trazer essa peça.Nem que eu tenha que fazer uma outra!

Mas,meu pai morreu dois dias depois com um ataque fulminante.Deixei o quebra-cabeça armado na mesa do quarto faltando a peça,esperando que o meu pai a trouxesse.Depois que ele faleceu,nunca mais olhei para o brinquedo.Comecei a ler e a estudar com mais afinco do que antes.

Chamei o repórter responsável pelas fotos e lhe perguntei onde ele tinha tirado aquelas fotos maravilhosas.O repórter lisonjeado foi logo dizendo o local:

------ Praia do Cabo Branco em João Pessoa,chefe.É uma beleza!

Agradeci,mandei as fotos para a redação e guardei o nome do lugar.Na primeira oportunidade de férias rumei para a capital da Paraiba .Levei na mente a paisagem que me acompanhou por uma boa parte dos meus trinta e dois anos de vida.Observei e conclui que a paisagem se dava perto do ponto final do ônibus do Cabo Branco,já em cima da Ponta do Seixas .Mas,faltava a escuna.

Passei vinte dias reconfortantes na Paraiba e já faltava mais uma semana de espera pela escuna da paisagem para que ela ficasse exatamente igual à do quebra-cabeça.No último dia,um domingo ensolarado e de tempo fresco vi ao longe,vindo dos lados de Tambaú ou de Manaíra ,uma escuna de casco vermelho e velas enfunadas afundando e se elevando ao sabor das ondas.Eram três carreiras de velas do mesmo jeito da que tinha na paisagem do quebra-cabeça.Meu coração começou a acelerar como se eu estivesse preste a desvendar o mais escabroso mistério .Sera que era ela?...Era!Mas,por pura falta de sorte o nome da escuna estava no outro lado e ela passou ao longo da baía num passeio onde haviam dezenas de pessoas da proa à popa.Fiquei no parapeito da janela do apartamento esperando a volta do navio e ao vê-lo no horizonte,meu coração começou a acelerar novamente e me lembrei do formato da pequena peça que parecia uma pessoa de braços abertos e o nome estaria,possivelmente,ao longo da extremidade do braço à outra extremidade que daria justamente o nome JOÃO PESSOA..

Não começava com "a" nem com "o".Começa com "j".JOÃO PESSOA era o nome.

Mais que de repente,corri à primeira papelaria no "shopping" para comprar cartolina e tinta.Comecei a entalhar a peça vermelha,finalmente,e coloquei o nome bem do jeito que vi com letras pretas.

Na segunda-feira me levantei mais alegre e aliviado do que era,mas,tinha que pegar o segundo vôo para S. Paulo no Aeroporto Castro Pinto em Bayeux .Estava ansioso para chegar em casa e completar o que estava faltando.

Foram quatro horas de ansiedade até chegar em Santo André na casa dos meus pais onde só estava a minha mãe.

Dei abênção e entrei como um furacão para o meu antigo quarto:

------- Mãe,onde está aquele meu quebra-cabeças?

A mãe assistindo televisão levou os olhos à tela e disse:

------- Joguei fora , faz tempo .Estava mofado.

PORTO VELHO 12/08/2019

Professor J Silva
Enviado por Professor J Silva em 03/02/2023
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