Meu velho

Já terminando no fundo da xícara tinha uma camada viscosa de açúcar dissolvido. O fim do café foi doce. Entornar o finzinho açucarado me fez erguer a cabeça e ver ele perfeitinho sentado lendo o jornal.

Paralisado com a visão inesperada procurei observar melhor. Não tive dúvida o jeitão era dele, folheava o jornal como se o resto do mundo estivesse em tempo congelado. Mas no sorriso cordial, que contrastava com os olhinhos de uma tristeza distante, reprimida no fundo da gaveta. Mas na gentileza abnegada e na discrição que a tornava quase invisível.

Percebi tudo isso porque, depois do café, dediquei um restinho de tempo para observá-lo melhor. E, agora, já não sei se ele era real ou uma miragem.

Nada me interessava nele mais do que seu mistério. Aparentava horas alegre e depois ficava sisudo, mas devolvia ao mundo gentileza. Isso é encantador. Eu queria vê-lo mais, só que na maior parte do tempo o velho ficava escondido atrás do balcão de pães doces. Quando andava, sereno e ereto, era possível avistar apenas a sua sombra entre as broas e croissants abrigado no balcão.

Aqui, mais à direita, perto do café, ele aparecia por inteiro. Girava e logo voltada ao esconderijo. A exposição era mínima. Eu o caçava com os olhos, mas só conseguia ver sua sombra entre os sonhos.

– Em comparação com a padaria lá de baixo, a gente trabalha pouco. Estamos no paraíso – disse uma funcionária a outra.

Pensei nisso. É claro que a tristeza da moça não era por excesso de trabalho. Era algo sobre amor – paixão, família, sei lá. Pus-me a imaginar. Porque não há nada melhor que imaginar.

Ela havia se separado do noivo há algum tempo, meses talvez, e agora começa a sentir o dissabor da solteirice. Descobriu que estar sozinha não é tão legal assim. Deseja, impetuosa, um novo amor. Não quer demonstrar, mas arde por dentro a vontade de encontrar uma paixão mais quente, aventureira, louca. Alguém capaz de pular de paraquedas, de fazer mergulho noturno, de viajar de moto, de ser carinhoso e ousado ao mesmo tempo, no chicotinho e nas fantasias. Que topa na praia paradisíaca, no meio das ondas, numa pousada gostosinha, no meio do mato, no sofá e na cozinha. Que dorme bem tarde e….

Espera aí! Cadê aquele homem misterioso? Foi embora? Nem percebi?

Lá mesa fundo toma mais café, e sorri parece feliz. Brincava debochava com os amigos no celular. Divertia-se à beça, sem qualquer preconceito ou mistério. Sua risada parecia um Chevette enguiçado. Um pouco rude. Engraçado, até.

Olhei dentro da xícara. Será que o açúcar viscoso era alucinógeno? Mas lembrei que havia me proposto a imaginar. Porque não há nada melhor que imaginar, reinventar, reescrever a história e, claro, errar tudo, ir bem longe do real. Enganar-se.

Jova
Enviado por Jova em 03/02/2023
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