O Indigente
Duas semanas antes de ser enterrado como indigente numa vala comum, ele já estava morto. Morrera num canil, não como cão, mas como caça. Estava numa vala comum, melhor, ao menos, do que ao relento num lixão a mercê de urubus e outros insetos irracionais que devoram o corpo em decomposição de qualquer ser movente. Diferente dos racionais que derretem os mesmos ainda vivos. Não podia dizer que estava vivo ainda, naquela tarde que conseguiu aquele emprego.
Numa tarde de janeiro, foi contratado por um ricaço que estava com seu jardim aos frangalhos, depois de quase trinta anos sem emprego, passou fome e sede pela vida, mas manteve a integridade, não queria ser taxado de ladrão como muitos deputados, igual ao que ele agora serviria. Olhou aquela mansão, comprada provavelmente nas custas do povo, em que a pé demorava meia-hora entre o portão e a porta de entrada. O jardim estava feio, mas melhoraria consideravelmente, assim como sua vida já comeria no próximo natal, ao menos uma pomba assada, ou um franguinho minguado.
Passou a ser conhecido como “o jardineiro” assim mesmo, sem letra graúda no inicio, mas estava melhor do que antes quando apenas chamavam-no de “coisinha” estava evoluindo. Ganharia um salário mínimo, nem fazia idéia que era “muito mínimo” mesmo, “miniminho” seria a palavra certa. Passou a dormir numa casinha de palha nos fundos, quase uma hora de caminhada desde a casa grande. Uma cachorrada, seis grandalhões, que comiam por dia, o que ele comia por ano, e a noite não o deixavam dormir.
Não os matava por simples cumplicidade de irracionalismo. Mesmo diante da aridez de seus patrões, do oásis canino, tratados como se humanos fossem, ele animal. Numa destas festas milionárias regadas com dinheiro da saúde pública, receberam gente do mundo inteiro, ignorando sua árdua tarefa de meses recuperando o jardim, destruíram-no, num piscar de olhos. Falavam outras línguas, ele nem entendia o português deles, quanto mais qualquer outra. Recolheu-se a sua repugnância. Entrou no canil comeria com os cães as sobras desta festa maldita.
Os cães mesmo adestrados, são irracionais como a maioria dos humanos, mataram “o jardineiro”, desfigurado, irreconhecível, não fossem os trapos imundos que vestia. O deputado temendo um escândalo desproporcional com gente desta espécie, tal qual o caseiro, resolveu desovar o cadáver num lixão próximo, e como previa, nunca foi descoberto, e mesmo que fosse provavelmente viraria pizza, das grandes, sonho de consumo “do jardineiro” desfigurado pelos humanos de quatro patas do canil do deputado sugador da força tênue do povo representado.
Não tardou muito para aparecerem urubus ávidos pela carne tenra e decomposta de um humano. Tarefa difícil para eles com tantos humanos catando restos como abutres pela sobrevivência de suas vidas mortas.