UM CRÔNICA NATALINA IRREVERENTE

Apesar de minha mãe ter sido criada por um pai severamente mariano (mistura de portuga doce com francesa brava como não sei quê), ela teve uma mãe criada por uma viúva espírita, de grande capacidade mental e muita leitura, mas pouca escolaridade.

Minha mãe tentou muito e quase conseguiu realizar um bom trabalho comigo. Quando pequena e até mocinha eu parecia a imagem da seriedade, e talvez fosse mesmo.

O problema é que chega um momento na vida em que temos de escolher nossos modelos, não sei se por afinidade de personalidade, por influência de quem nos batiza segundo minha doce genitora, ou por ter um doido feito xixi na minha cabeça, como sempre filosofava meu avô. Para desespero da mamãe eu fiquei passional, leviana (língua solta), impaciente e imediatista, como também irreverente (algumas coisas que eu falo, ela chama de depravação).

Meu pai, meu ídolo, era católico fervoroso até uns trinta anos, redentorista, cantor de coro com excelente voz e bom ouvido para instrumentos de corda. Eu sou um fracasso com a voz. O importante é que isto não interessava a ele, e assim como via na minha avó materna uma referência, guardo os presentes preciosos que meu pai delegou a mim. Uma herança rara, minha herança que foi construída por uma razão: todas essas pessoas foram boas leitoras, boas de verdade e isto foi incentivado desde muito cedo nas vidas de minhas irmãs e minha.

Onde está o humor nesta história toda? Já explico.

Quando eu ouvia meus colegas zoarem em sala de aula, os comentários hilários e muitas vezes indecentes de minha avó e madrinha, eu estava aprendendo o repertório deles de deliciosas malícias, as quais causavam embaraço em minha mãe. Estamos assim aqui, se somos bons leitores seremos também pessoas claras, concisas e muito criativas para qualquer público. Então lá vai:

Dia desses estávamos nós reunidas, família de mulheres fortes, festejando o natal antecipadamente. O pobre do meu genro, infeliz bendito fruto naquele mar de seres incompreensíveis para ele, tentava sem muito sucesso ficar na imparcialidade das bobagens que dizíamos. Se quando há um grupo de homens sai sacanagens, isto também acontece em variados graus em um grupo de mulheres.

Em um dado momento à mesa, vigiando se a mamãe estava vindo no corredor, comecei a contar as peripécias escatológicas de minhas cachorras. A pequena lhasa-apso, da minha filha mais velha, é extremamente felina em alguns aspectos de sua personalidade. Talvez por que realmente os cães assumem a personalidade de seus donos e minha primogênita é do signo de leão, brava, correta, discreta e infelizmente fechada como uma ostra, muito parecida com minha mãe. A pequena Meg, quando se vê frente a frente com injustiças, ou não gosta de alguma coisa que seja feita por meu marido ou pela caçula, se vinga deixando alguns presentinhos nos tapetes ao lado da cama deles, perto da porta do carro, ou pior: na cama da caçula.

Não sei como ela consegue ter sempre um estoque de bolinhas com perfume de escatol. Coprólitos todos mais ou menos como os pelets de ração. Mas ela nem precisa se concentrar muito é só agir, furtivamente é claro, deixando sempre a dúvida: foi ela ou a outra espuleta stret dog (da minha caçula).

Porém quando a indignação dela é muito grande deixa também sua urina, como quem manda um recado: estou de olho em você, não saia da linha com as minhas mãezinhas.

A outra cachorra, legítima street dog, de doçura e ternura irrefutáveis, extremamente dócil, não é dada a essas retaliações, mas adora brincar com qualquer bibelô, papel (até o higiênico da cesta de usados), se ela pega, ela detona, só de farra. Uma cachorra extremamente normal, que só faz ou fazia, cocô no seu cantinho e no jornal - todos com forma e tamanhos característicos – não deixam dúvidas sobre sua autoria! Após o feito como todo cachorro confere se é dela mesmo e vai à procura de um dengo no colo de qualquer um que esteja por ali.

Só tem um problema, ao se aconchegar, ela se lambe toda, se limpa nas partes recém usadas e inicia os rituais de cumprimento: lambidas e mais lambidas que provavelmente estão carregadas de saliva contaminada por coliformes e outros serezinhos de Deus. Se a vítima de sua saudação estiver de bobeira, dormindo então o alvo será o nariz. Generosas lambidas no nariz e na boca do felizardo escolhido para ser o depositário de tanta ternura canina.

Minha tia/madrinha lembrou-se que tinha um gato siamês que aprendeu com ela a urinar e defecar no vaso sanitário (ela falou cagar e mijar). Como ele fazia isso assentado não havia o problema que tantas mulheres reclamam: a tampa do vaso sanitário toda molhada de xixi. Em alguns lugares é indiferente estarmos no banheiro feminino, pois algumas nojentas fazem xixi agachadas e também não levantam o assento (o que é uma reclamação geral sobre os costumes masculinos e sua falta de pontaria) aí já viu né, se houver uma emergência fecal, fazer cocô agachada é o caos, respinga nas partes, um transtorno. Eu forro tudo com papel higiênico, após me certificar de que o assento está enxuto.

Depois dessa recordação do saudoso gato, eu tive um insight: "minha" street dog tem feito xixi no tapete do banheiro. Eu não fecho a porta quando ali estou a “obraire”, será que também ela está aprendendo, interpretando olfativamente ou aproveitando modelos de comportamento, entendendo: é ali que devemos deixar nossos resíduos fecais?!

Podemos chegar então a uma conclusão: os cães são mesmo muito inteligentes. A inteligência está, segundo VIGOTSK, Piaget, Paulo Freire, entre outros gênios, em criar em cima do que se aprendeu ou se sabe; minha cachorra sabe que deve fazer xixi e cocô no jornal e verificou que nós fazemos isto no banheiro, então ela faz suas necessidades no tapete do banheiro. Imagine se chegar na habilidade de se equilibrar majestosamente no assento da privada, como o gato da minha tia!

Nesse ponto minha mãe que estava por ali, como quem não quer nada se arriscou timidamente: os gatos nisto tudo são senhores do recinto, o persa da Lili (minha irmã caçula) acha que o banheiro é território dele, sua caixa de areia, água e comida estão ali. Eu não posso mais fechar a porta para fazer o que quer que seja que ele fica arranhando do lado de fora, agora até banho tomo de portas abertas.

E isso foi o máximo comentário que ela fez sobre o assunto. O meu genro já tinha até se engasgado de tanto rir. Ali eu imaginei e guardei inspiradamente o comentário, que ele estava realizando a minha mãe sentada no vaso, com um gato preto de olhos amarelos a vigiá-la em seus atos mais íntimos.

Então olhamos um para o outro e rimos juntos da cena dantesca.