O tronco
Só ficou tronco da figueira, à espera da felicidade desenhada em pneu e corda, meu pai constrói um balanço pra mim. A corda grande e o balanço baixo faziam um voo nas alturas, dava tocar nas galhadas bem acima. Impulso, impulso, impulso até a hora de saltar. O salto não tinha graça nenhuma e até doía, sabe? O bom mesmo eram os instantes de tensão e medo. É bom sentir medo. Sempre foi. A consciência de que o que tava fazendo não fazia sentido algum, ia resultar numa possível queda, e uma linda tatuagem nos joelhos e uma dorzinha no tornozelo, quem sabe, não me impediam de ter os meus deliciosos instantes de medo pré salto. Ventava forte dentro da barriga. Os cabelos, se molhados de tinta azul, fariam uma linda parábola no ar. Eu sabia que era pra isso, exatamente pra isso, que foram feitos os pneus. Pneus nunca combinavam com carros, na cabeça daquele menino tonto, que ficava sempre tonto ao viajar quinze minutos de carro. É…os pneus foram feitos pra fazer balanço, ventania na barriga.
A agonia de viajar de carro estava em saber pra onde ia. A certeza do destino e a certeza do tempo de chegada me faziam esquecer o caminho e ficar enjoada de tantas certezas. No balanço não… no balanço, a cada impulso se podia mudar o rumo, viajar pra outros sóis, e o caminho era delicioso, sem hora pra chegar. E se eu nem quisesse chegar, era só saltar e com uma dorzinha de leve, chegar ao chão com a certeza de que eu queria mesmo era viajar, não era chegar a lugar nenhum. Se via um pneu na rua, ficava imaginando um balanço bêbado embaixo de uma mangueira qualquer. Um carro eram quatro balanços, quatro sorrisos, quatro medos, quatro saltos, quatro viagens a lugar nenhum. Não tinha acúmulo de água no pneu, nem mosquito dodói, nem nada… tinha felicidade desenhada em pneu e corda.
De vez em quando, o pneu estava ao chão e a corda havia sumido. Ela acabava voltando e abraçando mais uma vez a árvore. Alguém, supostamente, teria precisado da corda. Isso eu nunca entendia. O que poderia ser mais importante do que o balanço na árvore? Nesses dias, eu era forçada a procurar outros medos. Embaixo da mangueira também podia apenas sentar no chão, desenhar na areia, fugir das formigas. E, nessa fuga, eu percebia que além de cheiro, o balanço também tinha um som, era o barulhinho de folhas secas no chão, amontoadas pra isso, pra fazer barulhos a cada impulso dos pezinhos no chão. “Menino, tu já tá grande demais pra esse balanço. Esse menino não cresce mesmo”. “Tô nada! A mangueira é mais velha do que eu e tá aí, no maior balanço estático comigo”.
Nunca fui de riscar troncos de árvores. Se acaso forem visitar a minha mangueira, não perceberão que passei por lá, a não ser que façam bastante silêncio e possam ouvir a revolução que era o barulho do balanço, uma verdadeira festa, em folhas secas, em vento cortado por um grande impulso no ar e um grito de mãe, quando no flagra de um voo audacioso, reclamava: “Menino, pelo amor de deus, cuidado pra não cair e bater a cabeça”. De todas as quedas, nunca bati a cabeça. Não que eu lembre. Aliás, já disse que não me importava o salto, importava mesmo o caminho e, lá sim, a cabeça se abria no vácuo que o balanço criava em violento corte no vento. Cabeça aberta, que até hoje não cessou viagem.
Hoje resta ali velho tronco e saudade dos bons tempo que era feliz e não sabia!!!!