CONFESSO QUE MATEI PASSARINHOS

Durante a infância meus amigos tinham o hábito de matar passarinhos. De posse de estilingues, caçavam por esporte. Por algum instinto que eles, na época, chamavam de coisa de homem. Sobrevivi a toda essa época sem o rótulo de assassino de pássaros. Tempos depois, já adulto, essa condição era para mim um tipo de credencial de homem correto, de pessoa decente.

Rapaz de bons modos, apreciador do canto de aves em mangueiras e abacateiros, imaginei que não levaria esse pecado ao banco dos réus no juízo final. Para meu desespero, estava enganado. Confesso que já matei passarinhos. E eu nem tenho o álibi de ser menino na época dos fatos. Já era homem conformado com as leis do mundo.

Meus crimes foram cometidos quando eu era repórter do jornal Diário do Norte. Com a missão de ser correspondente na região Nordeste de Goiás, eu fazia reportagens em cidades como Posse, Alvorada do Norte, Mambaí e Flores de Goiás. Para quem não conhece, para acessar a cidade de Flores de Goiás, é preciso sair da BR-020 – sentido Brasília a Fortaleza – e trafegar pela GO-114, por 50 quilômetros. Reside em alguns pontos desse trecho o cenário do meu crime.

Dos dois lados da rodovia há imensas plantações de arroz. É arroz até onde a vista alcança, diria algum homem antigo. Acontece que toda a produção é transportada nessa estrada por velozes caminhões. Acontece também que parte dos grãos cai e se espalha pelo asfalto. Alguns grãos entram pelas fendas do pavimento. O que para os produtores é uma pequena porcentagem de desperdício, é para os pássaros da região um sagrado banquete, uma colheita daquelas grandes.

O que parece ser uma fortuna para aves de diversas penugens, acaba se transformando num jogo de vida ou morte. Todo o tempo os passarinhos estão no asfalto, fazendo suas refeições, bicando o arroz que cai das carrocerias. Se distraem na colheita e alguns não percebem que ali é um tipo de corredor da morte, onde carros passam desesperados a 120 quilômetros por hora. Uma velocidade que passarinho desconhece. Muitos conseguem alçar voo e escapar do infortúnio. Para outros é tarde demais, são colhidos por para-choques, são abatidos por para-brisas.

Para minha desgraça – e desgraça maior dos passarinhos – resolvo cruzar essa estrada. Na língua dos pássaros seria a rodovia da morte. Por mais cuidados que se possa ter é impossível trafegar por ali sem colidir com alguma ave. Faço parte de um grupo bem numeroso de assassinos de aves. Confesso, imerso em minha vergonha, que tirei a vida de alguns passarinhos. Deixei alguns filhotes órfãos de seus pais e suas mães.

A primeira vez que atropelei um passarinho foi como cair em desgraça. Foi como perder a inocência. Me senti um tipo de caixeiro-viajante que espalha a morte pelas aldeias. Apavora-me a ideia de que, dentro do canto dos passarinhos daquela região, meu nome seja mote de canções. E eu seja citado como uma espécie de homem sanguinário, um homem armado com um carro, que num passado recente espalhou seu reino de terror.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 01/02/2023
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