EU E MEU RAIBAN II...
Tarde de sol em Campo Grande. Miolos cozinhando. Querendo exibir meu “caçador”, lentes pretas, raiban legítimo, comprado no Paraguai, a garantia ‘soy yo’, decido enfrentar um ônibus até meu trabalho. Lotado. Uma ‘hola’ involuntária vai se repetindo a cada freada. O empurra-empurra amassa roupas, desfaz penteados, suja sapatos, desfia meias, irrita os usuários. Já tomei todo tipo de pancada. Enquanto vou afastando um bundudo aqui, empurrando uma magrela acolá, pisando no pé de uma freira, metendo o cotovelo no olho de um turista americano que está perplexo com toda aquela parafernália, o milagre acontece. Um lugar fica vago. Naquele primeiro banco, para três pessoas, que fica logo na entrada do ônibus, ao lado do motorista. E assim, não sei como, de repente eu me vejo sentado quase no colo de uma jovem usando óculos de grossas lentes. Moça bonita, corpo bem torneado. Bem vestida. Tipo de família. Comportada. Cabelos longos e negros. Mulher, como se diz na gíria, “pra casar”. Seus olhos estão desesperadamente fixos no motorista. Escondido por trás das minhas escuras lentes adivinho que ela está sinceramente interessada no condutor do veículo. Pouco se incomoda se eu e o outro cara ao seu lado a apertamos mais do que deveríamos e sem necessidade alguma. Os minutos vão passando devagar. Aproveitando o martírio da longa viagem, me insinuo. Dirijo-lhe a palavra já me preparando para tomar um contravapor da felina. Falo sobre o dia quente e cansativo, sobre os coletivos sempre lotados, sobre uma inexistente probabilidade de chuva. Com mais ousadia, pergunto-lhe se por acaso seria conhecida do motorista. Ela se assusta. Quer saber o motivo da minha última e indiscreta pergunta. Falo que é porque tinha percebido que ela insistia em olhar para o mesmo desde a hora que eu me sentara ao seu lado. Nervosa, treme. Quase entra em pânico. Suspira fundo, ajeita os cabelos, esfrega as mãos, fica pensativa. Começa a falar. Há três meses pega o mesmo ônibus. Confessa que desde o primeiro dia se apaixonara pelo motorista. Desencantada com os homens de hoje, se encantara com o modo sincero e honesto com o qual ele tratava seus passageiros. Distinto. Educado. Sempre sério. Brincava, mas não extrapolava. Respeitava as pessoas. Era a pessoa com a qual vinha sonhando a vida inteira. Para casar. Diria sim se a pedisse em casamento. Enfim, acaba revelando (melancolicamente) que ele, o grande amor de sua vida, seu príncipe encantado, durante todos aqueles meses, mal olhara para ela. Estava apaixonada, mas desiludida. Quero ajudar. Pergunto se não seria a hora de tentar uma aproximação. Diz que não. Que tudo está perdido. É sua última vez nesse ônibus. De noite viajaria para outra cidade, na Bahia. Para cuidar de um parente. Nunca mais veria aquele rapaz. O coletivo pára. Ela se levanta. Faz um gesto com a cabeça, balbucia um até logo, se mistura na multidão que acaba de descer. Fico sem ação. Levanto-me. Paro ao lado do motorista. No primeiro farol que demora mais que a média, pergunto: “Por acaso você viu aquela moça de óculos de grau que desceu no outro ponto?” Rápido, o rapaz me confessa: “Claro. Como não? Há três meses que só faço isso. Ela pega meu ônibus todos os dias. Estou apaixonado por ela desde a primeira vez. É a mulher da minha vida. É com quem eu sonhei me casar um dia!”. Retruco: “Você nunca tentou falar com ela? De repente também gosta de você!”. Ele argumenta: “Esqueça. Está na cara que é filhinha de papai. Acha que iria se interessar por um pé-de-chinelo como eu? Tenho até vergonha de puxar conversa com ela. Eu, motorista de ônibus. Imagina!”. O sinal abre. O jovem apaixonado segue seu destino. Sento-me em um lugar que acabara de ficar vago. Meus pensamentos estão confusos. Na minha cabeça uma pergunta martela: “É isso que a gente chama de destino?”. Chega meu ponto. Desço com o coração despedaçado pensando na infelicidade daqueles dois jovens. O coletivo se afasta. Respiro fundo. Confiro minha carteira, ajeito meu raiban, reflito: “Meu Deus. Isso não é vida!”...
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