A Viagem de um Rei

Aquela praga terrível que já podia ser sentida pela aura negativa instalada entre eles com a chegada dos homens brancos! Eze, líder dos cussos, tentou alertar os outros líderes Xindonga, todavia ninguém acreditou em suas desesperadas palavras de súplicas. Eles trariam discórdia, e ela acabara de instalar-se.

 

Pensaram, erroneamente, que sua juventude em demasia lhe traria decisões infantis de quem ainda não alcançou a sabedoria da senilidade. Eze temia também a desconfiança que sua escassez de experiência poderia gerar, a morte precoce de seu pai não fora predita por nenhum xamã.

 

Eze só queria ser sábio com seu pai, identificar a praga do homem branco era como ver seu sucesso. Todavia, não lhe deram confiança. Aqueles avisos sofridos não escutados… oh, como Eze sempre buscava a verdade e nunca lhe eram concedidos ouvidos para escutá-la ao encontrá-la!

 

Um conflito! Entre os povos da paz! Observavam com reprovação os vizinhos guerreando, com sua harmonia Xindonga! A morte cercava não só os cussos, que Eze liderava, como também os outros três povos Xindonga. Agora, aonde quer que fosse, haveria rios sangrentos.

 

E Eze não era um guerreiro, eram tempos de paz onde se buscava conhecimentos e sabedorias. Desconhecia estratégias e sentia que seus homens se perdiam muito mais que os outros. Ser cusso era ser derrotado… oh, tamanha humilhação!

 

Quando já não havia mais vidas para se trocar por segurança e honra, a derrota fora aceita. Não era possível prever o que viria de torturas e humilhações dos vencedores Xindonga. Eze sabia que teria que enfrentar o pior de seus temores, era o líder, o prêmio.

 

Só os mais jovens e fortes foram carregados pelos homens brancos, talvez Eze fosse privilegiado afinal. Saberia qual demônio se escondia nos seus rostos brancos. Além de ser jovem e capaz, ainda era o líder. Sabia que sua tortura iniciara.

 

Estavam amarrados a ferro e eram ameaçados com armas estranhas. Eram jogados nos fundos de um barco enorme e fechados à escuridão. Não sabia se ali seria seu destino ou se iria numa longa viagem para servir, como outrora se fizera com aqueles que perdiam na batalha.

 

Eze fora jogado em um fosso no navio, estava tudo em trevas e não se podia enxergar os horrores que sentiria em tal cubículo. Todavia, quem precisaria de olhos com esses sentimentos tão reais? Era tão pequeno que nem de joelhos ficava, Eze deitava desajeitadamente e se apertava entre outros cussos que faziam o mesmo.

 

Será que seriam somente cussos? Quantos mais os homens brancos sequestraram antes de levarem infelicidade para os Xindongas, e principalmente os cussos, seu povo? Sentia que estava preso entre muitos, mais do que apenas os constituintes dos cussos. Será que haveria outros líderes sucumbidos entre sua desgraça compartilhada?

 

Eze, pelo tratamento que ali percebeu que não receberia, percebeu-se enganado quanto ao que pensava ser o destino de um prisioneiro de guerra. Não sabia quanto tempo havia se passado, não sabia se era dia ou noite… Só via trevas e sentia dor pelo desconforto da posição. Sabia que os outros poderiam estar ainda mais tortos que ele. Oh! Como apreciava o conforto que perdera, o qual possuía entre os cussos!

 

Em algum momento foram tirados de lá no chicote. Cada vez que sentia suas costas tocarem em tal arma, podia perceber parte de sua honra se esvair por sua pele. Cada toque, cada machucado, cada marca indigna para um chefe Xindonga... Sua nobreza era roubada tão rapidamente que suas pernas humilhadas mal podiam suportar seu corpo desonrado.

 

Eze supôs que o destino de verdadeiros tormentos finalmente chegara e que desceriam daquela prisão apertada e desconfortável para algo ainda mais humilhante e torturante. Percebeu que a sabedoria que tanto lutou para conquistar havia falhado. Foram jogados no convés e receberam gritos em algum dialeto estranho.

 

Apesar de não falar o dialeto do homem branco, a magia da salvação interveio e era como se falassem o mesmo idioma materno. Era só ver a ameaça do chicote em ação que como em transe todos já podiam enxergar claramente o pedido daqueles homens.

 

Era um espetáculo de horrores. Vários homens desengonçados que, sob a pena da chibata, pulavam e corriam sem sincronia. Fracos e machucados. Alguns até doentes, já que estavam empilhados no espaço apertado no fundo do navio. Na sujeira dos dejetos, ratos e poeira. Talvez, entre corpos sem vida daqueles que se foram sem que pudesse notar. Não se lavavam, não se via nada e não havia lugar limpo para ser visto.

 

A última vez em que Eze sentiu os prazeres da gula, foi quando ainda estava em seu lar. Como poderia ele ter forças reservadas em seu desgraçado corpo humilhado e ferido para demonstrações físicas forçadas?

 

Agora que não estava mais acorrentado àquele obscuro calabouço das trevas sem fim ao fundo do navio, era agraciado com a visão de uma bela manhã. Que manhã seria aquela? Como saber há quanto tempo saíra de sua terra ou quando se deliciou pela última vez com uma bela refeição?

 

Eze já não encontrava mais forças, sua energia inesgotável da juventude se findou. Estava para se despedir da consciência quando sentiu a agonia de uma forte chicotada e tentou recobrar os sentidos que se esforçaram para esvair de seu corpo quase inerte no chão. A chibatada foi direcionada a um servo, que acertou um corpo de chefe. A desonra da servidão.

 

Agora que o direito de ver a luz lhes fora concedido de forma tão não desejada, Eze descobriu que as crianças eram livres da maldição de se espremer na prisão compartilhada em que ele se espremia. Elas possuíam apenas uma fantasia, a liberdade. Pobres almas inocentes, a servidão eram os seus futuros.

 

Algumas podiam ver além, ver o destino da escravidão. A liberdade estava tão perto… O mar as chamava. E elas escapavam em direção a uma nova esperança na pós-vida. Eram livres finalmente, crianças livres e honradas. Um destino superior ao para que seriam levados.

 

Muitos tentavam seguir o caminho ilusórios de escapar pelas águas, no entanto a liberdade era mais simples para as crianças. Mais preciosos, os mais crescidos não conseguiam soltar as amarras de ferro para escapar. Ah! A liberdade das águas! Até a morte lhe parecia atraente, considerando o que teria que ser ao chegar no lugar onde o pouco de sua soberania que lutava para continuar junto de si se despediria, enfim.

 

Não possuía a menor noção de tempo. Dia, noite… Quantos dia e noites? contava o tempo pela quantidade daqueles que compartilhavam o triste destino da terra firme. Seja por sucesso em alcançar a liberdade das águas, seja por falta de forças, seja por doenças, eles diminuíram em número rapidamente. Eze devia ser o único com forças para se manter saudável, ou talvez ele já estivesse sucumbindo também e ainda não percebeu. Não se pode diferenciar uma dor de doença quando se convive com uma dor mais forte. A dor da humilhação.

 

Sabia que incorporaram os animais com os quais eram tratados quando a sede chegou. Eze, que contava quantos já partiram, percebeu que muitos foram levados pela sede. A guerra começou pelo pouco de água que eles conquistaram, o privilégio de admirar e a confiança para sonhar em se deliciar com ela. Eze fora arrebatado com a lembrança da guerra entre os Xindonga. Essa disputa ele não perderia.

 

O homem branco encarregado de trazer-lhes água sentiu suas pernas amolecerem e liquefazerem quando viu muitos homens sedentos que pareciam dispostos a matar pelo bem que ele tinha. Não aceitaria encontrar seu fim naquele momento, então ele empunhou sua faca e se preparou para se defender. Não seria vencido por aquele bando de animais. Sua faca foi roubada rapidamente e ele fugiu correndo, não sem antes assegurar-se que todos estavam presos ainda.

 

Eze sentiu-se um fracassado. Só conquistou um pouco de toda a água da vida que chegara a ele e os outros desgraçados. Se nem essa guerra ele poderia vencer, sua autoridade realmente se foi. Ele era mais um servo desgraçado pronto para ser chicoteado para o resto de seus dias. Ele, o chefe dos cussos.

 

Se havia um momento que dava um pouco de luz ao pobre coração de Eze, era o momento dos exercícios. Nem ele nem ninguém possuíam forças, era uma dança desengonçada com chibatadas no meio. Porém, o calor do dia era a única coisa que mantinha Eze vivo. Sentia-se cada vez mais fraco, sentia que podia padecer sob alguma doença há qualquer momento. Sua vida saía de seu corpo sem que pudesse controlar, e em algum momento, todas as partes dela se despediram de seu corpo desgraçado.

 

Os outros viviam só por aquele momento também, o calor do dia podia sarar as feridas de ficar preso por um tempo desconhecido em um porão apertado de um navio sem saber se era dia ou noite. O calor do dia talvez fosse ainda mais reforçador do que Eze pensava, era o último suspiro de todos os prisioneiros.

 

Ele não sabia o que se revelou como acontecimento logo quando começou, os homens brancos também estavam confusos. Entretanto, não demorou para que todos pudessem ouvir o último suspiro de liberdade e dignidade que saía pela boca de todos eles.

 

Eze pensou que toda a fome e sede enlouquecera-os. Eles estavam fracos, não tinham armas… A vontade era mais forte do que ele pensava, a ânsia de escapar a qualquer custo também. Não havia como os homens brancos calarem aqueles que levantaram. A maioria foi inspirada, agora não havia nem mais vantagem numérica para eles. Alguns preferiram a vida e não a liberdade. Eze podia compreendê-los, mas não suportaria a escravidão. Ele lideraria novamente, na liberdade da pós-vida. Afinal, aquela pequena rebelião padeceria logo.

 

Como era esperado, a revolta foi rapidamente dominada e todos os envolvidos foram jogados no mar sem ressentimento. Era esse o fim… A liberdade. Como os outros, Eze nadou para longe assim que atingiu a água. Como os outros, ele sabia que não chegaria em seu lar a nado. Como os outros, continuou para longe até suas forças acabarem e esperou que o mar o levasse.