Crônica: Acerto de Contas
CRÔNICA: ACERTO DE CONTAS
Amélia Luz
Depois de muitos anos trabalhando em uma biblioteca pública nunca ouvira coisa igual. Atrasada com as minhas atividades em catalogar velhos livros resolvi fazer horas extras para deixar tudo em ordem. Concentrada no meu trabalho percebi uma estranha discussão quebrando o silêncio da noite:
- Olha o seu arcaísmo rabugento cheirando a naftalina me incomoda, não vê que já é um sujeito ultrapassado e que hoje todos me preferem solta, esvoaçante, atual, ao invés dos seus longos relatos do passado? Vendo cores de alegria, esbanjo coragem, voos, sopros coroados de premiações diversas.
- Sua sirigaita cheirando a subúrbio. Você é mesmo uma desaforada! Sabe há quantos anos eu moro nesta biblioteca tri centenária? Pois é, não sabe? Pois eu lhe digo que já fui preferência internacional de muitos leitores, “best seller” saindo da pena de Guimarães Rosa, Murilo Rubião ou Dalto Trevisan. Já leu”Sorôco, sua mãe, sua filha”, do Rosa? Você chegou a pouco e agora se presta a me criticar dessa maneira? Diz-se a grande preferida? Qual! Tomei o elixir da vida longa, sou imbatível.
- Atualize-se, Seu Atrasadão e abra outras janelas para ver as novidades do mercado e do mundo. As feiras de livros, as exposições, aos lançamentos que me enchem de glórias. Você esnoba dizendo ter “unidade dramática”, “de tempo”, “de espaço”, que lida com “número reduzido de personagens”, que tem “diálogo dominante” e ainda se retrata como uma “história completa”, “uma célula”, “um ovo”, “um só conflito” !!! Pois bem amigo, eu em verdade estou no auge, no “podium” onde sou admirada por todos. Fico entre a literatura e o jornalismo, entendeu? O jornalismo! Resulto da “visão pessoal”, “particular e subjetiva” de quem me cria. Viajo nas profundezas, nas entranhas do meu criador sem ficar, como você, contando lorotas inventadas. Quem me escreve vive de olhos abertos ante os fatos, colhidos nas ruas, nas revistas, nos jornais ou até no cotidiano apressado que acompanha todos os “flashes” da modernidade enquanto você, pobre coitado, vive fechado nas páginas amarelecidas dos velhos livros.
Registro as circunstâncias aqui e ali, viajo mundos, crenças, raças, costumes com altas doses de humor, sensibilidade ou ironia enquanto a sua turma entorpece o leitor que cochila e adormece com os seus longos relatos de dias, meses e até anos, saiba-se lá, séculos! Séculos, isso me dá até mal estar!
- Sinto muito, mas não tenho mais paciência de aguentar os seus insultos e a sua ignorância. Como você precisa aprender a conviver com as diferenças. Eu sou o grande CONTO, preferido do Machado, que tantas páginas deixou consagrando-se ao me criar em tantas publicações, sua incompetente metida a besta.
- Muito bem, muito bem, pois saiba que da lavra de Nelson Rodrigues, Clarice Lispector ou João do Rio, hoje estou nas revistas, nos jornais, nos livros, assim, juntinha com o leitor, com o meu público que se extasia com as minhas linhas novidadeiras, seu rabugento rebuscado. Já leu “A casa” de Rubem Braga? Nasci para brilhar, feminista, sucesso da atualidade. Passeie em minhas páginas e só assim melhor me conhecerá.
Fiquei perplexa. Agucei mais os meus ouvidos e descobri que era o CONTO e a CRÔNICA em animada discussão trocando farpas numa disputa, um desqualificando o outro com fartas doses de inveja, competição e a mesquinha busca de emoções vibrantes e posições sociais.
Anos atrás não se ouviria esses disparates nesta nobre biblioteca onde se reuniam escritores famosos, romancistas, contistas e cronistas para trocas de ideias em plena harmonia, cada um respeitando o seu estilo.
Foi quando, de súbito, entrou um jovem estudioso em literatura, com cara de intelectual, um rapaz culto e preparado que escutara toda a conversa. Em alta voz impôs-se colocando a sua opinião ao dizer que toda prosa é prosa se é de valor, quer seja conto ou crônica depende da preferência do leitor. Eu, por exemplo, disse ele, não dou muita bola para rótulos. Quando escrevo dou o meu recado simples e direto e pronto. No futuro será mesmo assim. Cada um lê como quer ou escreve como preferir na incompletude. Entendeu? Incompletude! Conto? Crônica? Não importa. O que importa é que estou escrevendo ao invés de ficar escravizado em inutilidades na tela do computador o que muito uso só para pesquisas. E concluiu dizendo para a Crônica desaforada:
- Olha mocinha, estamos amadurecendo mais e merecemos o seu respeito. Os dias passam, nos envelhecemos mais, uns aceitando, outros não, embora percebamos as diferenças dentro e fora de nós. O nosso desgaste interior e exterior antes de ser notado pelo outro é sentido por nós.
O mundo “fashion” está aí entupindo as vitrines, dominando. Não importa se estou de fraque, “pince-nez”, chapéu e bengala ou de bermudas. Usamos o que daqui a pouco será considerado fora de moda também. E o conto nunca estará fora de moda porque ele sempre terá o seu grande destaque na literatura universal. Lembra dos Contos das Mil e Uma Noites? Tradição literária de Sherazade? Nunca envelheceu.
E, se no amanhã você perde o seu “podium”, perde a jovialidade vindo a ser superada por um modismo enganoso qualquer? O que fará com esse seu orgulho pretencioso? As palavras não dormem, seguem apressadas o galope do tempo de boca em boca ou de página em página. Você tem a sua valorização vendo a vida como ela é, sempre cruzando uma outra estrada como crônica e não precisa mostrar a sua insegurança brigando por esse título; rótulo apenas. Falou e saiu apressado dando um leve aceno com a mão.
Então, bibliotecária experiente, parei o meu cansativo trabalho e observei o jovem usando a difícil arte de ser um pacificador. Fiquei admirada. Finalmente ele conseguiu acabar com aquela discussão ridícula fazendo com que o CONTO e a CRÔNICA voltassem a se respeitar e serem bons amigos de novo.
O que posso afirmar é que na biblioteca, daí por diante só se ouvia cochichos carinhosos, toques amorosos e meses mais tarde descobri para a minha surpresa, no berçário, entre rendas e filós a “CRONICONTO” que nada mais é que um novo rebento nascido da união do CONTO com a CRÔNICA que se deram em grande paixão. Os dias se seguiram em paz e uma nova família foi criada para atender a mais uma exigência extravagante do leitor esfaimado por novidades.