DE VOLTA PRA CASA
Venho de muito mais longe que aqui estou, quando sou um longo e percorrido rio a desaguar seus volumes em um imenso mar de mim. Às vezes, e não são poucos as vezes, encontro-me assim já não me cabendo de tanto eu.
Qualquer dia desses me derramarei além das bordas e, no transbordar de meus excessos, misturar-me-ei à água e à lama destas poças em que agora piso.
Sinto-me tão enchido e tão represado que custa o caminhar de cada passo no regresso para casa. Arrasto-me, portanto, em ruelas e becos, esquinas e cruzamentos, curvas e retas, como se meu curso fosse voltar para depois retornar a voltar de novo. Não fui feito, embora seja afeito, ao destino dos desvios.
O céu noturno é límpido de nuvens e lua. Quem me alumia não é o luzir debilitado e remoto das parcas diminutas estrelas, mas sim a artificialidade fluorescente dos postes onde qualquer visibilidade de mim é senão a inautenticidade postiça de um homem.
Percorro calçadas antes iluminadas por candeeiros, margeando os casarios em cujas sacadas velhos fantasmas presenciam minha transitoriedade com olhares de fatigados de mais de um século. Por estas mesmas antigas ruas caminhou e viver meu pai, suas dores, glórias, mágoas, amores e perdas.
Ali em que se senta o insone bêbado será que houvera ele de falar de si e ouvir os outros? Quisera saber em suas intermináveis conversar madrugais falava ele de mim, quando eu sequer ainda existia. Que lugar ocupa um filho na cabeça de um pai cuja paternidade é somente promessa? Não conheceu ele o boiar que aqui agora está, assim como não conheci seus incorpóreos sonhos. Talvez melhor que eu, para todo o sempre, a materialidade de um filho porventura desejado – ainda assim não teria ele em conta o rol dos meus fracassos.
Gargalha a puta estridentes risadas de bordel, enquanto a cachorro ladre sem intimidades ao largo de minha passagem. Trago em minhas roupas restos da recente noite e seus simultâneos odores de nicotina, perfume e álcool. A cada instante em que se aproxima o sol busco me livrar das minhas magras sobras, espantando a camisa como que se livra de pós e sujeiras.
Derrubo no chão salpicos escuros de noite, não sei que horas são. Temo olhar o relógio que propositalmente guardo no bolso direito da calça – afinal olhar relógios, assim como olhar calendários, é tarefa daqueles que reconhecem o avizinhar de seus términos. Tenho toda minha vida aprisionada no girar dos ponteiros e nos dígitos algarismos dos relógios, por isso me falseio de rejuvenescimentos, negando o tempo. Que ninguém me pergunte as horas. Não responderei minhas idades.
Do outro lado da cidade meninas dormem na espera de serem mulheres do amanhã no momento que já estarei mais perambulando bares e festas, encontros e desencontros, à procura de impossibilidades (estranho buscar o amor de uma mulher que ainda não chegou).
Ah! soubessem os infantes do meu erro não cometeriam este meu único pecado: deixar de ser criança. Não sofreriam eles o sofrer da nostalgia e o arrependimento dos crescidos. Devia-se punir os meninos de imaginarem ser adultos, para os adultos não sentirem saudades de serem meninos.
O dia principia em seus rituais de amanhecer e são outros os personagens que ao meu redor circulam. Estivadores, operários, garis, empregadas domésticas, trabalhadores braçais e humildes substituem a boemia insatisfeita e recolhido à inevitabilidade da próxima noite. Quem me permanece fiel é o bêbado, sentado no lugar do meu pai. Acena-me com manear zonzo da cabeça e tolo sorriso. À distância cumprimento meu passado como há pouco me despedia do futuro ainda não acordado nos leitos infantis das mocinhas. O que pensa Deus de mim neste instante quase matinal? Deus dorme feito menina, sonhando outros diferentes mundos.
Solitário e impensado, tenho convivido mais com as noites do que com os dias. Já não me aguento. Cansado e cheio, decido repousar minhas abundâncias antes que tudo inunde por onde passo. O boteco do mercado, ao contrário de Deus, não dorme. As padarias logo abrirão suas portas e teremos pães
quentinhos. Macaxeira com charque e um copo de leite morno ainda de ontem forram meu estômago vazio me preparando para o dia que breve se inicia. Não tenho pressa, nem sei as horas. Do outro lado do rio e da cidade ninguém me espera.
Mastigo devagar e sem saborear, sorvendo lentamente meu primeiro café de hoje, como se isso, afinal, tivesse enfim alguma importância