SERÁ QUE PERDEMOS O "TREM DAS ONZE"?

Hoje, com muito carinho, escrevo para a aniversariante São Paulo , a minha cidade natal.

Quatrocentos e sessenta e nove anos que do "Pateo da Garoa" se originou a Sampa fervilhante o que, de fato, desenha uma longa vida de antíteses!

Ligo as "multi telas" onde as euforias estão totalmente eufóricas, assim como ocorre em todas as paixões, quando a razão cede os trilhos a alguns devaneios viajantes, nem sempre lucidamente justificáveis.

Tento enxergar com nitidez em meio a tantas cortinas de fumaça...

-Viva, hoje tem festa pela cidade toda!

Comemoro junto.

Afinal, somos uma megalópole das multiculturas, onde a arte afaga o tudo das esquinas, o tudo que " AINDA acontece nos nossos corações" , principalmente naqueles que pulsam vivos olhos de ver.

Assim...sonhamos e desenhamos os nossos retalhos históricos dentre o sonho irreal e o surreal das realidades.

A arte, inclusive a urbana, sempre urge da nossa necessidade gritante e inconsciente de Seres Humanos, a de não parar de "acreditar".

-Hoje é dia de aniversariar Sampa por toda cidade, viva a arte!

Sonhos reais voam pela poesia andarilha que pulsa em meio à cidade de "altos e baixos", desde a visão do mais recente mirante "mecatrônico" que nos conduz às alturas, o que chamo de "Sampa-Eyes"-uma enorme "roda gigante" recém inaugurada às margens do Pinheiros que juram despoluir- até os subúrbios subterrâneos que afundam com tudo e todos, no interior dos buracos abertos nas almas e nos asfaltos, solapando a vida em meio à degradação frutificada dos abandonos.

Cruentos buracos abertos nas carnes e nos trilhos que sangram a olhos nús.

-Viva, hoje é aniversário de Sampa! Viva!- sem morrer nas esquinas!

Não precisamos de altos mirantes, nem de alargadas lentes, tampouco de raras rimas pra enxergar e chorar.

Nossos versos também soam e reverberam logo ali, no baixo, no raso, no vazio do incompreensível.

Rodo pelo pensamento e marco minha viagem que parte do coração, lá da minha Estação da Luz de criança, a aguardar meu "trem das onze" sem pedir licença ao Adoniran.

Hoje é ele verso livre, perene e contundente do coração da cidade.

Adquiro meu bilhete de ida, momento em que sonho embarcar tranquilamente no meu "tour" na qualidade de filha da cidade, a lhe parabenizar pelo todo cantado e decantado no tempo.

Quero fotografar a foto mais inédita da pandemia de vidas que não existem, ocultadas pela euforia dos discursos políticos..

-Viva, Sampa está em festa!

Acredito.

Assim, ouso subir as escadas do Municipal, as da Sé (meu Deus, só milagre!) do Farol Santander, do Museu Catavento, do Museu da Língua Portuguesa, do recente restaurado Museu do Ipiranga (onde até há pouco tempo esquecido, largado às traças, mas sempre a registrar a certeza histórica de que um dia tivemos a digna autoestima de Identidade Independente de Nação) , visito o museu do Imigrante, o Largo São bento, aproveito para meu cafezinho costumeiro ali no Girondino (delícia!) penso em descer a Porto Geral e chegar à Vinte e Cinco de Março em segurança para comprar quinquilharias; enfim , ouso apenas trilhar a minha cidade pensada de longe...que muito assusta se olhada de perto.

Evito olhar para cima e para baixo para não constatar a dor dos tantos rescaldos sociais.

Temo não conseguir sair do lugar. Sinto com se estivesse presa...

Ato contínuo, penso que sinto medo porque não sei o que vou encontrar pelas ruas dos trilhos descarrilados.

Decerto que, ao andar pelas calçadas, terei que pedir licença para circular pelas "cidades lares" instaladas ao meio fio , sob os viadutos, nas praças e nas escadarias do tudo.

Já é tarde demais, o sol vai alto mas nublado e nem todos conseguiram despertar...

Também aprendi que nunca se adentra o lar das pessoas sem antes ser anunciado ou sem pedir licença.

Sei que no meu passeio traçado terei que preparar o olfato para reconhecer as ervas aspiradas amalgamadas ao fluxo da ureia derramado ao chão duro da recente noite ida, sempre borrifado ao derredor, em meio ao despertar sob as tendas aquecidas pelas labaredas das lenhas e pela s brasas das almas que ali queimam juntas.

Sei que não conseguirei travar um diálogo esclarecedor , nem comigo e nem com ninguém, dos tantos porquês que pululam sem respostas e sem ações sustentáveis, do tudo que destoa de todos os discursos que se farão pelo dia.

Sei que terei que desviar, sempre em respeito aos sopros das vidas, dos amores carnais, que lembram as vidas animalescas, como cruzamentos ali protagonizados sob as marquises, ao lado das crianças que dormem os sonos já não inocentes, roubados de sonhos, mas ainda acreditando que aquilo tudo é vida possível.

Talvez meu coração não aguente enxergar a ascite de tantos fígados já idos, carcomidos pela cachaça calórica que aconchega os destinos das almas tão gélidas.

-Viva, sampa aniversaria e teremos "shows" da vida pela cidade toda!"

O teatro da tragédia humana é sempre visceral.

De repente...acordo da euforia alheia.

O meu "Tour" sonhado era apenas um tomo surreal perambulante, daqueles que rodam pelos pesadelos que doem e aprisionam porque nos conduzem pelos trilhos dos trens que rumam às "meia-noites".

Desperto aliviada... a agradecer a Deus por voltar para a minha estação de lentes lúcidas, apenas numa das realidades pontuais desses trilhos dos tempos, de ventos sampistas uivantes; tempos nos quais, pelos possíveis caminhos de sonhos realizados, havemos de pedir desculpas caso nossos cenários e horizontes sejam mais dignos.

Quando não se tem real perspectiva da realidade... a dignidade, inclusive a urbana, passa a ser moeda de troca ATEMPORAL.

E todas as dores vão aos coliseus das diversões...

-Viva Sampa, e toda suas esquinas cada vez mais concretas!

A olhar para o passado e a fugir do futuro...faço-lhe, São Paulo, um presente verso de presente:

"Sampa querida, sinto muito amor, como eu gostaria de poder ficar só mais um pouquinho com o que você já foi".

Assim, retorno a minha pergunta fundamentada, a que a refaço a mim e ao poeta "dos trem":

"Adoniran, será que perdemos, de vez , o nosso trem das onze?"