CLARICE E CAROLINA

QUEM TEM FOME NÃO PODE ESPERAR

Nelson Marzullo Tangerini

Em dois momentos Clarice Lispector se materializou diante dos meus olhos: quando relia Carolina Maria de Jesus.

Em “Quarto de despejo”, de Carolina, encontro fragmentos que me levam à Clarice:

Em “Quem está com fome não consegue dormir” (5.11.1958). E em “Deixei o leito às quatro horas. Eu não dormi porque me deitei com fome. E quem deita com fome não dorme” (7.8.1958).

Aquela criança chata, ao lado da mãe – talvez debaixo de um viaduto, talvez debaixo de uma marquise, talvez num barraco na favela do Canindé, em São Paulo, Capital, ou outra comunidade qualquer (e são muitas no Brasil), não podia dormir por causa da dor da fome.

A mãe, resignada, mas também faminta, do conto de Clarice, tenta fazer com que o filho, igualmente faminto, durma - como ela -, enquanto a escritora diz não se conformar com aquela cena – tão comum em países de 3º mundo.

Enquanto escrevo esta crônica, Milton Santos também me vem à mente: “Existem apenas duas classes sociais, a dos que não comem e a dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem”.

Também me vêm à mente os versos do poeta Solano Trindade: “Tem gente com fome”. Porque tem gente com fome nas ruas, nos trens lotados, debaixo de marquises e viadutos.

O Padre Júlio Lancelotti denunciou, recentemente, que “Os miseráveis” não podem mais dormir debaixo de viadutos em São Paulo, porque algum ilustre humanista da Prefeitura da maior megalópole da América do Sul pôs, debaixo deles, obstáculos como pedras ou pontas de ferro para que, ali, os desvalidos não encontrassem abrigo – ou um lugar onde pudessem se aliviar.

Maria Firmina dos Reis, em “Úrsula”, escreve que “as almas generosas são sempre irmãs”. Mas há quem, em pleno século 21, entenda que igualdade social e combate à fome é uma luta de viés comunista e que a melhor solução ainda é o saneamento (leia-se extermínio).

Enquanto a AIDS prometia-lhe a morte certa, Herbert de Souza, o Betinho, fez a sua parte, tentando fazer com que muitos não dormissem com fome. Porque quem tem fome não pode esperar.

Carolina, que, além de catar papelão, também cantava sapatos e restos de comida no lixo – para ela e seus filhos -, deixou-nos um retrato vivo do que voltaríamos a ver no século 21: pessoas catando carcaças no lixo para se alimentarem e se manterem vivas. Enfim, “De um lado esse carnaval; do outro, a fome total”, escreveram Gilberto Gil e Herbert Viana.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 24/01/2023
Reeditado em 25/01/2023
Código do texto: T7703213
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