HD quebrado, supernovas, e bichinhos de papel.
Todos somos feitos da mesma coisa, a mesma substância. Tá, eu não gosto de afirmações concretas e unânimes. Tenho que separar um espacinho pras pessoas que são mais que a mesma coisa, são mais que substância, são a matéria inteira. Um espação.
Mas temos lá a carcaça, o pensar que armazena as coisas, os componentes. É só aquela porçãozinha, aquele minusculismo que se manifesta numa abstração. Alguns chamam de alma, nomeie como quiser, só sei que tem pessoas que mudam a química do nosso cérebro, ativam aquela disfunção narcotizante, fazem parecer uma supernova.
Ouvi Walter Carvalho dizer esses dias que as "Pessoas estão perdendo a capacidade de contemplar" Talvez tenha um fiapinho de razão, talvez sim, mas prefiro acreditar que não. Prefiro acreditar que, todo ano, quando estala o primeiro de janeiro, quando explodem os fogos no céu escuro e as pessoas olham pro céu em comunhão, de celebração, seja da vida ou da morte, elas estão contemplando.
Aquelas, as pessoas de quem falei, as que tem mais substância, essência, talvez contemplem mais que as outras, talvez.
"Uma supernova é uma explosão estelar poderosa e luminosa. Este evento astronômico transitório ocorre durante os últimos estágios evolutivos de uma estrela massiva ou quando uma anã branca inicia uma fusão nuclear descontrolada. Ocorre quando o núcleo de uma estrela,
por alguma razão,
entra em colapso."
Ontem eu tava vendo uma palestra do Gregório, dizia que escrever era como ressuscitar as palavras. Fiquei pensando, pensando, isso se debatendo lá dentro. Tô sentindo minha escrita perdendo o ritmo, a força, desidratando. É bizarro que eu se preocupe mais com coisas tangenciais, que não consigo tocar, que com o coração que vai batendo devagar as vezes, ou as oscilações passíveis de toque, mas que vão desaparecendo, desaparecendo, até morrer.
Os franceses vão chamar de "le petit mort" pequena morte. Aquele instante, aquele momento do orgasmo que se traduz numa vulnerabilidade, num ir para o céu e voltar, numa explosão.
Ontem descobri que vou perder tudo. Tudinho. Isso. Lá vai eu com o mesmo tipinho de afirmação apelativa e Unânime que falei mal. Calma, eu explico. Perdi tudo do meu HD.
É que meu computador deu pau. Deve ter sido quando tava levando ele de um lugar pro outro. A internet disse que pode ter sido pancada, porrada, mesmo que de leve, qualquer coisinha já danifica. Ontem também tava gripado. Anti-alergico. Passei o dia emburrado. Não sei com o que, nem com quem, uma irritação, um negócio lá dentro. Fico assim quando doente, nada funciona, nada existe, apenas um corpo falível e frágil. Dum jeito que pancada, porrada, mesmo que de leve, qualquer coisinha já danifica.
Nem devo ter muita coisa ali dentro. Talvez uns livros que nunca li, umas lembranças que esqueci...ah, tinha fotos do meu sobrinho, fotos do meu sobrinho...
Tinha você, tinha aquele cheiro de casca de laranja que eu gosto. Tinha aquela memória de andar de moto com pai, de comer o bolo de mãe, da escola antiga, do amigo que era o único que brincava comigo, mas que não lembro o rosto, do...
ah, nem sei mais.
Adormeci de tarde, morri pouquinho, tive um pesadelo bizaríssimo que não lembro, e depois um sonho bonitinho, que lembro melhor. Lembro que alguém me fizera vários brinquedos, um alguém desconhecido. Todos brinquedos de papel. O que achei curioso depois, já que eram tão articulados, coloridos, lembro de brincar sozinho, por horas quase como se eles tivessem vida. Tinham vaquinhas, um avião, um caminhão. Filhotinhos de bichos. Tudo parecia pintando a mão e dobrado com destreza, ternura. Acho que foi isso.
(Perdão por esse texto, ele nem sequer tem uma função, ele só é.)
Mas nem tudo tá perdido, pai falou que era só trocar.
"Essas coisas tecnológicas não foram feitas pra levar de um lado pro outro"
É provável que apague todos os arquivos, mas sem problema. É que nem a supernova, pra uma estrela morrer, findar, ela emite muito brilho, ocupa muito espaço, numa dicotomia de criação e destruição.
Até não existir mais.