Brasil Maria-Fumaça
Sou do tempo do Brasil Maria Fumaça, o Brasil Ferroviário. Tempo dos trilhos, pontilhões, tróleis, vagões, locomotivas, viradouros, ramais, Rede Mineira de Viação, etc. etc.
Desse tempo do Brasil Maria Fumaça, uma das melhores recordações era a Festa de Conceição do Pará, dia 8 de dezembro. O dia começava de madrugada, pois o trem saía cedo. Eram só uns 10 kms, a viagem de nossas vidas. Tomávamos o café com pão e ajudávamos na preparação da matula. Vovô Zé fazia paçoca no pilão de madeira, delícia na hora do almoço. Ele não ia, nunca o vi andar de carro ou de trem. Quem nos levava era a vovó Abel (Isabel), mãe do papai. Essa gostava de viajar e de mudar. Morou em metade das ruas de Pitangui e algumas de Itaúna, quando se mudou para lá por causa dos filhos mais novos, Laura e Tito.
A festa de Conceição era uma verdadeira quermesse. Brinquedos, roupas, comida de todo lugar de Minas, tudo se vendia. Para as crianças, só o burburinho de tanta gente desconhecida já era uma recompensa. As meninas brincavam entre si e os meninos sempre levavam bola de futebol. As peladas duravam até os mais velhos chamarem para ir embora. De trem, claro.
Outra recordação do Brasil Maria-Fumaça era a certeza de que se podia viajar o mundo inteiro, a partir da estaçãozinha do Velho da Taipa, distrito a uns 5 km de Pitangui. Do Velho da Taipa, podíamos ir a Bom Despacho, Abadia (hoje Martinho Campos), Abaeté e mais cidades para o Oeste. Para o Leste, havia Brumado, Guardas, Pará de Minas, Azurita. Daí para, o sul vinham Divinópolis e outras estações. Para o Norte, chegando ao entroncamento de Azurita, íamos até a estação central de Belo Horizonte.
Daí em diante, é hora de viajar com Osias Ribeiro Neves, que, em seu livro Sumidouro, nos leva a 60 estações e paradas: Santa Luzia, Pedro Leopoldo, Matosinhos, Prudente de Morais, Sete Lagoas, Cordisburgo, Curvelo, Corinto, Buenópolis, Bocaiúva, Montes Claros, Janaúba e Monte Azul. Era a linha centro da Central do Brasil. Daí se conectava com a Viação Férrea Leste Brasileiro até Salvador. Esse Brasil Maria- Fumaça começou a acabar na década de 60, com a construção de Brasília, Três Marias e as rodovias do período JK.
Depois disso, trem-de-ferro virou rapidinho trem de museu. As estações e as linhas foram dando lugar a estradas para automóveis. A mudança abriu espaço para que nós, crianças e adolescentes daquela época, ajudássemos a destruir o que restou. Anos mais tarde, talvez para reparar uma meia dúzia de pedras atiradas na estaçãozinha da Água Suja, participei da campanha de preservação da estação de Pitangui, ameaçada de demolição. E conseguimos.
Órfão desse época, andei me encantando no YouTube com a construção da ferrovia Norte-Sul. Era a esperança inocente de que aquele tempo podia voltar. Bobagem, tudo será diferente, mesmo que o transporte ferroviário volte a incluir os trens de passageiros. Nenhum resquício daquele tempo: hoje as locomotivas viajam a 400 km por hora, com ar condicionado, internet e cidades grandes por todo lado. Acabaram-se as matas, os bois magros, temos soja e os bois, todos de raça, não pastam à beira dos trilhos. À festa de Conceição do Pará se chega de Uber, com celular. Viagens parecidas àquelas da Maria Fumaça só as dos trens de turismo: Vitória-BH, Curitiba-Morretes, Tiradentes-São João Del Rei e zé fini.
Na verdade, nem são os trens. Eles sozinhos, mesmo com traços do passado, não trarão de volta a paçoca do vovô Zé, a despachada Vó Abel e a magia daquela inocência perdida.