Dr. Francisco José, coração gigante!

Julho de 2013.

Tinha acabado de cair, sem paraquedas, no Núcleo de Administração Patrimonial e Atividades Complementares - NAPAC, do Centro de Gerenciamento Administrativo - CGA, do Departamento Regional de Saúde de Presidente Prudente - DRS XI.

É que o Centro Regional de Controle e Avaliação - CRCA-IX, do Departamento de Controle e Avaliação - DCA, da Secretaria da Fazenda - SEFAZ e a Unidade Regional - UR-5, do Tribunal de Contas do Estado - TCE-SP, vinham apontando, em suas auditorias de conformidade e gestão e relatórios de fiscalizações anuais, inúmeras e recorrentes irregularidades no controle dos bens patrimoniais pertencentes à Secretaria de Estado da Saúde, que se encontravam sob posse e administração dos Municípios situados no âmbito administrativo da Unidade Gestora Executora - UGE 090117. Versão oficial.

A real é que o patrimônio do DRS tava uma bagunça e os órgãos de fiscalização não iam mais aceitar desculpas esfarrapadas. Olha as canetadas:

"O inventário anual dos materiais permanentes deve indicar com exatidão a localização e o estado de conservação dos mesmos, cuja propriedade deve ser demonstrada pela respectiva chapa de identificação, que deve estar fixada em parte do bem que permita sua imediata visualização".

"É inadmissível que o Estado não saiba quantos bens possui, quanto valem, onde estão, em que condições se encontram e como estão sendo utilizados."

"Providências devem ser efetivadas imediatamente visando à reorganização da gestão patrimonial da Unidade, sob pena de responsabilização dos servidores e diretores."

Aterrorizante!

Quantos órgãos, quantas siglas, quantas normas, quantos bens - 27.500, espalhados nos 45 municípios da área de abrangência do DRS XI - quantas dúvidas, quanta pressão. Que bucha!

Pra piorar, liberação de recursos pros Municípios reformarem e/ou ampliarem suas Unidades Básicas de Saúde: R$ 216.000,00, pelo Programa Qualis UBS II.

Como assim, pra piorar? Grana pra atenção básica é sempre bom...

E há dez anos esse valor era bala pra dar um up nos Postos de Saúde...

E o que é que tem a ver com o Estado o imóvel, lá no Município, onde são desenvolvidas as ações e prestados os serviços de saúde?

Só tudo! Praticamente todos os imóveis são propriedade da Fazenda do Estado de São Paulo. É que até 1988 a gestão da saúde era responsabilidade do Estado: bens móveis e imóveis, recursos humanos - médicos, enfermeiros, dentistas, profissionais das áreas técnica e administrativas - todos vinculados à esfera estadual.

Não existia o SUS, já imaginou?

A Constituição de 88 municipalizou a atenção básica de saúde, mas o que e quem era do Estado permaneceu como estava. E o tempo passou. E muitos ajustes, que deveriam ter sido efetuados por conta da transferência de gestão, adivinha?

Pois é, não foram feitos mesmo não!

No caso dos imóveis, quase todos em situação irregular: ocupados e utilizados pelos Municípios, mas sem nenhum documento formal. E chuta qual era um dos requisitos pros Municípios poderem receber a verba pra reforma e ampliação dos seus Centros de Saúde?

Possuir o Termo de Permissão de Uso do Imóvel, assinado pelo Secretário de Estado da Saúde e pelo Prefeito Municipal, após autorização expedida pelo Governador, em decreto, autorizando a Fazenda do Estado a proceder à outorga da utilização do bem.

Dos 49 imóveis sob a responsabilidade do DRS de Prudente, situados em 40 Municípios, só três estavam ok pra serem contemplados com o recurso.

Fazer o quê?

Não!

A pergunta é: o que fazer?

Primeiro passo: visita in loco, um por um, pra comprovar que o prédio estava sendo usado como estabelecimento de saúde. Registros fotográficos da fachada, recepção, consultórios, sala de vacina, de fisioterapia, farmácia...

Bora lá então!

- Já conversei com o Chico! Ele vai ficar exclusivo pra levar você pra ver os Centros de Saúde. Resolução da Diretoria do NAPAC.

Francisco José Monteiro Filho: o Chico!

Motorista do DRS. Melhor: Oficial Operacional - Condutor de veículos oficiais do DRS.

Foi amor à primeira viagem!

Nem tanto né, mas nasceu uma baita amizade. Que presente! Foram três meses de convivência diária. E não teve um dia em que não rimos até doer o maxilar.

É que todo dia tinha sessão de piada na volta pra casa. E o mais engraçado nem é a história em si, mas o jeito que o Chico conta. Ele simplesmente começa a rir no meio do relato. Não se aguenta e leva a gente junto. Quando vê, tâmo gargalhando antes de saber o fim...

Impressionante! Tô aqui rindo sozinho só de lembrar...

E não eram só as piadas os motivos pras risadas. Pensa numas trapalhadas que o cidadão aprontava nos almoços. Falando nisso, quer comer bem e barato na região? Só consultar o Guia Chico de Gastronomia do Oeste Paulista.

Um dos preferidos é o Supermercado Taniguchi, em Mirante do Paranapanema. Tem o famoso bandejão: arroz, feijão, salada, batata-frita e opção de bife de contra ou filé de frango. A dica do Chico é pedir um de cada, cortar no meio e trocar um pedaço com o amigo, pra poder provar das duas proteínas.

E se não der conta, não tem problema. Ele se prontifica a finalizar o serviço, porque não admite desperdício de comida de jeito nenhum.

- Isso é um pecado! Um absurdo! Com tanta gente morrendo de fome no mundo!

Inclusive já saiu rapando, várias vezes, o que fica nos pratos das mesas vizinhas. Os garçons caem na gargalhada. Já tão acostumados com a aula de conscientização alimentar.

Na Nova Alta Paulista, tem o Caipirão, em Tupi, na rodovia. Comida caseira, simples, com aquele temperinho especial. Em Panorama, tem um bem pertinho do rio, na esquina, que serve um peixe fenomenal, seja qual for o preparo: assado, frito, moqueca...

Em Iepê também tem peixe de responsa, na telha e, em Rancharia, a churrascaria do Centro é top. Chico se acaba no rodízio. Mais que recomendado.

Pra Regente tinha uma exigência, plenamente justificável: só podia agendar visita pra sexta-feira, que era o dia da rabada no Cantinho.

E, em Venceslau, o famoso Gaúcho, na Raposo, perto da entrada da cidade. Na época, o self service era R$ 9,90. Fogão de lenha no meio do salão, comida pra caminhoneiro nenhum botar defeito. Panelas de barro ou de ferro?

Eu achava que eram de metal, mas o Chico teimava que eram de cerâmica. Tivemos que perguntar pro próprio Gaúcho. O mais sábio estava certo.

Almoçamos lá quando o pessoal de São Paulo veio com o caminhão pra buscar bens inservíveis em Epitácio. Os meninos também batiam forte, mas se espantaram vendo o Chico em ação.

- Rapaz, deixa pelo menos um espacinho aí pro coração poder continuar batendo...

Ah, o coração do Chico. E não é que o coração desse figura é gigante mesmo! Nos dois sentidos...

Que pessoa gente boa, que chega a exagerar no bem que faz ao próximo. Disposto, prestativo e sempre sorrindo. Só não doa e não empresta o que não tem...

Depois que terminamos as vistorias nos imóveis, voltamos aos Municípios muitas vezes pra fazer inventário dos bens em uso regular e recolhimento daqueles que não estavam mais sendo utilizados.

A gente ia de Kombi. Tirávamos os bancos pra transformar a guerreira em veículo de carga. E nos especializamos em logística de carregamento. O pessoal via e mesmo assim não acreditava que a gente conseguia acomodar tanto volume no nosso "utilitário".

E a segurança, então? Não podia passar dos 80 por hora, pra não ter que frear brusco. Paúra de que a carga esmagasse a gente a qualquer momento.

E sempre só nós dois no basquete. A obrigação do Chico era só conduzir o servidor, mas todas as vezes ele colocou a mão na massa. E era cada depósito, galpão, barracão, quartinho nos fundos do Centro de Saúde. Adicionais de insalubridade e periculosidade seriam concedidos de ofício, sem qualquer questionamento.

Escorpião, cobra, aranha. Passado um tempo, quem caía morto era o bicho, depois de picar a gente. A concentração de veneno no sangue era maior que a do próprio animal.

Em Marabá, o depósito era no ginásio de esportes, debaixo da arquibancada. Naquele dia trabalhamos feito condenados. Terminamos cobertos de uma mistura de poeira e óleo ou graxa - não deu pra precisar - que não desencroava de jeito nenhum.

Quando chegamos no Gaúcho, olhamos um pro outro e caímos na risada.

- Rapaz, periga que vão trazer um Marmitex pra gente comer aqui fora mesmo, pra não constranger o almoço do pessoal!

- E acho que nem vão cobrar!

- Caridade com dois mendigos...

E foi naquele dia que o Chico refletiu sobre o que a gente tava fazendo.

- Rapaz, você não acha que a gente tá dando prejuízo pro Estado, não? Tâmo gastando com combustível, desgaste da viatura, sua diária, minha diária, seu tempo, meu tempo. Será que vale a pena bancar esse custo pra não achar quase nada no Município e só ficar trazendo o que achou quebrado?

- Mestre! Gênio!

Esse insight do Chico rendeu um processo de baixa de 11.600 itens a fundo perdido, com fundamento na previsão legal de que o controle deve ser suprimido quando seu custo se revelar evidentemente superior ao valor dos bens, em estrita observância aos Princípios da Eficiência e da Economicidade.

E, numa tacada só, 42% dos bens foram excluídos do inventário. Quase metade de todo o trabalho, graças à perspicácia do Doutor Francisco José!

Pena que praticamente acabou a necessidade de fazer inspeções nos Municípios. E as aventuras e peripécias dos malucos da Kombi chegaram ao fim.

Pelo menos também ficaram pra trás as presepadas de pegar coisas no caminho. Mania de acumulação do Chico. A esposa brigava, mas ele continuava levando pra casa o que achava que um dia poderia vir a ser útil.

E o danado tem olho de águia. De longe já focava no que interessava. E sobrava pra este que vos fala fazer a captura.

- Desce, vai lá e pega ligeiro!

E foi televisão quebrada, esquadria de alumínio entortada, placa de compensado, pedaço de pneu de caminhão (pra levar pro rancho da represa, pra tocar fogo e espantar os pernilongos) e tudo o mais que se possa ou não imaginar. Até milho já tive que "colher" na beira da estrada.

Até que...

Lembra do coração enorme do Chico?

Deu pra crescer ainda mais e já não tava mais cabendo no peito. Passou mal, ali mesmo na sala dos motoristas. Sorte que a Santa Casa é logo ali, só atravessar a avenida.

Mas o susto foi grande!

Nosso amigo ficou meses afastado pra se tratar. Maneirou na comilança, partiu pras caminhadas no CEU do Itapura, eliminou uns 20 quilos de risco de infarto. Voltou pro trabalho, mas com algumas restrições. Viagem longa, nem pensar!

Aposentou ano passado. Mas continua na ativa, tá nos finalmentes da obra da igreja. Participou de cada etapa da construção, como engenheiro, pedreiro, eletricista, encanador, pintor. E ainda fez e vendeu muita pizza pra reverter pro templo. E que pizza! Arrisco dizer que é a mais recheada da cidade!

A parte ruim é que deixou o trem voltar a ficar solto: a cintura já retornou ao diâmetro original e as caminhadas se limitaram a atravessar a rua pra cuidar dos cultivos no terreno do vizinho.

Outro dia apareceu aqui em casa, com umas caixas.

- Vim trazer um presente pra você!

- Fala sério, Chico! Só você mesmo...

Era um jogo de panelas, iguaizinhas às do restaurante do Gaúcho! De barro!

- Vi e lembrei daqueles almoços da gente!

Pode uma coisa dessas?

Então, já que tá próximo o aniversário do amigo - é quarta, dia 25 - fica essa singela tentativa de retribuir o mimo.

Se bem que é certeza absoluta que ele ia preferir mil vezes uma feijoada completa, daquelas bem trabalhadas na gordura, feita nas panelas que ele me deu.

E o pior é que pra que ele possa ler esse texto, vou ter que imprimir e entregar pessoalmente ao cidadão. É que nem WhatsApp ele tem instalado no celular.

Ah, Chico!