Mudança
Talvez eu reforme essa crônica, recoloque os tijolos, mas por ora, é o que tem pra hoje
Tava cascaviando na internet, lendo as coisas do Henfil, aquela que ele escrevia pra mãe dele, sagaz, simbólico. Escrevia pra mãe, escrevia pra nós.
E assim como num sopro, tudo o que escrevo deixou de fazer sentido bem rápido e forte. Apago. Deixou pois era real e dolorido, e tudo que é real e dolorido me dói bastante.
Rápido e forte como a dor que congela o cérebro se tomar muito sorvete, como meu café que esfria e eu fico num looping de colocar mais um pouquinho só pra esquentar, beber, esfriar, colocar outro pouquinho.
Numa eterna entropia,
bagunça de mudança.
Girei a semana inteira tentando catar os fatos, pedacinhos de papéis escondidos, proibidos, como aquela minuta do golpe que acharam na casa do tal Anderson num sei quem que li nos jornais.
Diferente desse cara, as coisas que me denunciam tão a dar nas vistas, escapam por entre o meu sorriso, ou no espaço de uma palavra e outra. Pior, acho que as coisas que eu não digo, falam mais sobre mim do que qualquer outra coisa.
Eu só preciso ir lá,
ir lá e achar.
Nesse processo de achar, as informações geralmente vem num repente, rompante.
Anoto.
No fim moldo algo mais ou menos coeso.
Pequenos blocos viram paredes inteiras. Tá, talvez com buracos, lacunas, frestas, e no fim é possível que eu acabe jogando fora, desprezando algo como uma coisa que fazia parte do meu corpo e já não faz mais.
Tento subir pavimentos, patamares, colocar janelas, instalação elétrica, portas, quartos e todo resto, fazer da minha escrita algo uniforme e morável.No fim não tava funcionando, e aí decidi ir atrás de algo que me fosse real e dolorido.
Mudança.
Não gosto muito de mudança. Não mudança de mudar, digo mudança que bagunça de uma casa pra outra, de quando se transporta um pedaço de si. Móveis, cacarecos, desimportâncias, quinquilharias. Demora sempre um pouquinho até a entropia se ajeitar, ficar um pouco mais coesa.
Quando mudo, sempre penso sobre quem morava antes, porque foram embora, e mais que isso, como vão ficar os fantasmas? Vê só, assombraram por tantos anos uma mesma família e agora eles vão embora assim, sem mais nem menos. Tadinhos, tadinhos dos fantasmas, recebem nem um tchau.
Além disso, também sou dos que se apega aos objetos, as ranhuras nas paredes, aquela mancha de suco de uva no sofá difícil de tirar, aquela xícara de asa quebrada, aquela garrafa de inox com um amassado, que diz minha vó, foi quando a mãe dela arremessou em um dos filhos (???).
Deixar de ser o que era é difícil, seja quando se escolhe sair, ou quando a mudança vem que nem soco, baque. Que nem da vez em que descobri que pai e mãe estavam separados.
Foi, descobri.
Mãe falava com num sei quem, e aí não lembro se por acaso, ou de propósito, lembro de passar e ouvir uma conversa no telefone. Mãe falava sobre como tavam as coisas, sobre como o dinheiro era pouco, sobre como estava separada ia fazer dois anos.
Dois anos? Separada?
Minha cabeça de menino girou, e voltou pro mesmo lugar. Curioso como quando se é criança, coisas óbvias se despercebem.
Mas é, gente é que nem casa mesmo. Só que diferente de casa, gente não deixa pra trás os fantasmas quando se mudam, levamos as ranhuras nas paredes junto, e os fantasmas dentro.
E não da pra mudar de gente, abrir e tirar o que tem dentro, os sentimentos mal digeridos, as escadas que não findam em lugar nenhum, colocar um ponto naquela frase que ficou vírgula, nem desplugar aqueles pensamentos intrusivos que piscam que nem néon a noite.
Mas talvez seja isso mesmo, talvez Clarice tenha acertado quando disse pra ter cuidado em cortar as as coisas, os defeitos. Mude, mas mude devagar, com cuidado. Cuidado, pois não dá pra saber qual mantém de pé o edifício inteiro.
Acho que é Isso, acho que por hoje é só.
Antes que eu me esqueça, vou só dar tchau,
tchau pro fantasmas
que ainda não me despedi.