Machado, Feedback & Eu
Agosto de 1990. Sentada à sua mesa, à direita do comprido quadro negro, a professora Carolina“Feedback”, cabeça baixa, cenho franzido por trás dos grossos aros dos óculos bifocais, rabiscava seus apontamentos em movimentos densos, aparentemente absorvida pelo gesto. Escrevo “aparentemente”, porque então eu não conseguia resistir ao impulso temerário de espiá-la em modo “estroboscópico” de onde me encontrava, ao fundo da sala, livro de Língua & Literatura (do José de Nicola) aberto sobre a carteira – e assim a flagrava levantando sazonalmente os olhos, e “escaneando” a sala (os ditos olhos agora por cima das lentes, oscilantes à esquerda e à direita na cabeça sempre baixa).
A carteira em que me acomodava era uma das 43 na sala do Bloco A, ocupada pela turma 2A MEC no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, o CEFET-RJ (antiga “Escola Técnica Nacional”), reputada referência civil do ensino profissionalizante de nível médio no país. À esquerda do quadro negro, lado oposto ao canto perto do qual se encontrava a mesa da professora, a janelinha envidraçada na parte superior da porta permitia, de onde eu me sentava, visualizar um trecho do Maracanã, referência inequívoca local, nomeando a avenida em cujo 229 situa-se ainda hoje o educandário - que se estende por um quarteirão inteiro, até a rua General Canabarro.
Na parede à direita da mesa da professora, duas amplas janelas envidraçadas permitiam contemplar o verde vivo do belo jardim no pátio interno (que mais parecia um “microparque”, exuberantemente arborizado e atravessado por alamedas sinuosas – estas, pontuadas de bancos de madeira pintados em verde escuro). Logo à entrada da alameda de acesso principal ao pátio, o busto do prof Celso Suckow, primeiro diretor da “Escola Técnica Nacional” - que nos meus primeiros meses como aluno confundi com o busto do presidente Getúlio Vargas, até enfim me aproximar e ler a placa na base do monumento.
Éramos 41 rapazes com idades entre 15 e 19 anos, e apenas 2 moças, numa época em que o curso de mecânica era então pouco popular entre meninas.
Naqueles idos dos anos 90 no CEFET-RJ, a disciplina de “Língua Portuguesa & Literatura Brasileira” não era lá muito atrativa aos alunos (sobretudo entre os da maioria que havia resistido ao 1º ano de curso, durante o qual, tradicionalmente, não poucos alcançavam a certeza de que o caminho industrial ou “das exatas”, definitivamente não lhes cabia).
No segundo ano, a maioria dos alunos sabia bem o que queria fazer da vida, e via de regra isto não envolvia nada associado ao que se designa frequentemente por “ciências humanas” (como se houvesse ciência que não o seja). Meus colegas da 2A MEC em geral eram muito inclinados às máquinas, à física, à química, à matemática. Raro não era encontrar entre nós, em fina flor da puberdade, quem considerasse o estudo de língua portuguesa desimportante para carreira industrial .
Não bastasse o esfarrapado “vetor vocacional de desconexão”, a professora do 2º ano era destas que por suas singularidades tornam-se, na melhor ou na pior acepção do termo, inesquecíveis para gerações inteiras de alunos. Já naquele tímido inverno, colecionava sortidos episódios de atrito com a turma – se é que posso chamar de “atritos”, ensaios de confrontos verbais em que a profissional se impunha com notória solidez. Uma solidez proporcionada pelo temperamento naturalmente forte, pela segurança do pleno domínio do conteúdo lecionado, pela consciência do regimento (tão claro quanto severo, no tocante a “desacato de mestre por parte de aluno”), e, sobretudo, por muitos anos de experiência em salas de aula coalhadas de adolescentes.
Carolina “Feedback”, portanto, detinha inapelável ascendência sobre seus alunos. Uma ascendência dura, grave, mas jamais exasperada. Sua voz, com pronunciado acento nordestino, era apenas firme e alta o suficiente para ser bem ouvida pelas últimas fileiras de carteiras. Ela jamais gritava. Não era simpática, tampouco mau humorada – não digo que sorrisse pouco, pois em boa parte das minhas lembranças de interações com a Mestra, ela surge...sorrindo – um sorriso invariavelmente sarcástico...sim, ela era boa em ironias: até hoje, lá se vão mais de 30 anos, me pego recorrendo a algumas delas em conversas informais entre ex-colegas.
Assim, se por um lado a professora já registrava um substantivo histórico de conflitos com a 2A MEC ainda antes do fim do 1º semestre, por outro, sua fama a precedia...nossa turma não seria a primeira a temê-la ou hostilizá-la (ainda que sub-repticiamente), e muito menos haveria de ser a última.
Carolina “Feedback” era alagoana, de baixa estatura, uns 45 anos, talvez pouco mais, nitidamente mestiça (como eu), cabelos levemente crespos, repuxados e reunidos num coque impecável atrás da cabeça. Lembro-me dela sempre de saia & blusa, roupas de cores sóbrias, sandália de solado baixo, livros e cadernos nos braços, uma bolsa grande pendurada no ombro. Jamais se atrasava, e naquele 1990 faltou duas vezes, por conta de óbitos em família (fico me perguntando se as únicas de sua carreira até ali, a julgar pelo testemunho de alunos veteranos). Ao retornar, em ambas as ocasiões, não demonstrou a menor alteração nos modos, na voz, no olhar...
Os exercícios propostos na semana anterior (constantes no Livro-Texto adotado), ela “os tomava” na semana seguinte, escolhendo nomes “aleatoriamente” na lista de presença da turma (embora em mais de uma ocasião eu tivesse razões para suspeitar que os “escolhidos” para responder às questões não eram assim tão aleatórios). Se o “contemplado” respondesse errado, ou não respondesse, era “condecorado” com uma notinha minorante em seu nome na lista (de sorte que, a depender do desempenho no acompanhamento destas atividades durante o bimestre, por ocasião da semana oficial de provas seu exame bimestral poderia valer 80%, 70% dos pontos inicialmente atribuídos à avaliação).
As provas da professora “Feedback” eram notadamente ásperas, de sorte que em se tratando de “Língua Portuguesa & Literatura Brasileira” àquela época na “Escola Técnica”, as notas mais altas muito raramente superavam 7,0, 7,5 pontos – e obter 6,0 já era suficientemente difícil.
(***)
Retorno àquele agosto do primeiro ano da última década do século. C.arolina “Feedback” (em tempo: a alcunha, a título de “sobrenome”, fazia menção a um dos tópicos do conteúdo programático da disciplina, “Linguagem & Comunicação” – “emissor, “interlocutor”, “ruído”, “feedback”... – de onde brotava um estrangeirismo curiosamente sonoro quando pronunciado pelo sotaque característico da Mestra) logo na primeira aula após o recesso de julho, fazia poucos minutos distribuíra, junto com os “bom dias”, a “atividade de boas vindas ao semestre”: Leitura Silenciosa. O texto era “A Cartomante”, de Machado de Assis, (Machado surgira na minha adolescência assim discretamente, sem o mais tênue alarde, por “obra & graça” de Carolina “Feedback”), e naquela manhã, justamente este texto mudou muita coisa na minha vida. Mudou o modo como eu via a professora – ou antes, como eu ouvia o que ela dizia, como eu lia o que ela escrevia. Substituiu as lentes por meio das quais, eu enxergava a Literatura Brasileira...e, não demorou muito, a Portuguesa; e, por fim, ampliou meus recursos de compreensão da própria Literatura Universal. Fatalmente o referido conto, acessado pela primeira vez naquele meado de 1990, acabou por transformar irremediavelmente o modo pelo qual me expressava, sobretudo por escrito.
A impressão que me vem à lembrança hoje, era a de que na sala, inicialmente apenas as 2 únicas moças da turma estavam francamente concentradas na leitura. Os demais, de cabeça baixa, em silêncio, olhos matreiros pulando do livro aberto para o colega ao lado, e daí apara a professora... risinhos sacanas asfixiados...ou seja, quase a totalidade da turma em modo típico do traço de comportamento masculino que muitos anos depois eu testemunharia ser classificado como “síndrome da eterna 5ª série” (com comprovação sociológica fartamente documentada em anos de “chopes” com colegas de turma, todos nós avançando para além das 45 primaveras).
Em dado instante, o olhar gelado de Carolina “Feedback” por cima das lentes cruzou com o meu, levemente zombeteiro, flagrantemente irresponsável. Ela não fez mais que baixar os olhos, deixando antever o risinho debochado que sempre vestia nestas ocasiões, ao tempo em que estendia uma das mãos para alcançar a lista de presença, e com a outra (que havia soltado a esferográfica azul), acionava com o polegar a ponta da bela esferográfica na cor vermelha. Um eloquente incentivo – consertei-me da carteira, e enfim procurei iniciar a leitura.
Àquele tempo, eu já era um leitor voraz – da Bíblia Sagrada tinha concluído o Pentateuco, alguns dos livros Históricos (Josué, Juízes, Samuel, Reis, Crônicas). Também já havia terminado os 4 Evangelhos e seguia nas cartas de Paulo. Vários títulos da Ágatha Christie, uns 4 do Orígenes Lessa, uns 3 volumes da coleção “Para Gostar de Ler” (primeiro contato com Rubem Braga, C. Drummond de Andrade, Fernando Sabino), séries inteiras da Coleção Vagalume (com clássicos da Literatura Juvenil como “O Mistério do 5 Estrelas”, “A Mina de Ouro”, “Tonico & Carniça”), séries inteiras da Coleção Ediouro (“A Inspetora”, “A Turma do Posto 6”, “Vivi Pimenta”), e vários títulos da Literatura Universal (Alexandre Dumas, Julio Verne, R Louis Stevenson). Já conhecia também José de Alencar (e não gostei quando li...) eventualmente, antes de Carolina “Feedback” me apresentá-lo, por meio de minha irmã mais nova, estudante normalista, que à época andava em pânico por conta de uma prova baseada na leitura de um dos livros do autor (“Lucíola”).
Se disse que “não gostei” do que então li do J de Alencar, não estou sendo absolutamente honesto: gostei da descrição da minha cidade em idos do séc XIX (quesito que eu haveria de apreciar ainda mais na obra do Machado).
Aliás, eu já ouvira falar de Machado de Assis Igualmente: àquela altura do curso, os autores Românticos (nacionais e estrangeiros) tinham sido competentemente abordados por Carolina “Feedback” durante suas aulas. Ocorre que então uma sequência de comentários da professora havia me escapado miseravelmente (a exemplo de outros tantos, turvados por minha imaturidade e pela lúgubre impressão que o conhecimento em verso desta Escola Literária - Romantismo – cravara no meu gosto: decerto, morrer aos 20 anos sem beijar na boca era demasiado trágico até para mim).
“Feedback” declarou algo que eu hoje recupero da memória, como aproximadamente “...este autor (Machado) é o único que se notabilizou em duas fases bem heterogêneas, ainda que com traços de distinção autoral em ambas...”. E logo seguindo o silêncio reticente da turma: “...Mas o melhor ainda está por vir...” (salva de caretas ecoando por toda a sala) ...”Em breve vocês terão o privilégio inenarrável do primeiro encontro com a ‘fase de ouro’ da obra de um dos mais importantes autores da Literatura Universal ...e definitivamente, do maior autor em prosa da Língua Portuguesa! Não tem pra ninguém...!”
Ao fim, Carolina "Feedback” falou com entusiasmo sobre Joaquim Maria Machado de Assis – sua genialidade, seu humor requintado, o apuro psicológico na construção dos personagens, as “inovações estéticas do estilo”...e, para além do autor, “o homem” (!): “exemplo de superação pessoal, nascido pobre no Morro do Livramento, mestiço, órfão de mãe ainda na primeira infância..”.
Por ocasião desta fala, pouco antes do encerramento do semestre, às portas do recesso escolar, o que vazou da vivacidade no timbre da voz e na expansão do gestual foi, na professora, o que mais inequivocamente se aproximou de uma ilustração de bom humor. Porém, não obstante, todo aquele repertório de informações preciosas - pelo mero conhecimento, e pela invulgar revelação do gosto ou do juízo pessoal de Carolina “Feedback”, que definitivamente não era mesmo dada a “familiaridades” – se me evadiu...eu ouvi, mas fiz pouco caso (só mais tarde, no semestre seguinte, fui procurar recuperar mentalmente as expressões daquele dia, pois seriam de muita utilidade na iluminação do meu novo interesse).
Agora, havendo se passado 2 semanas do recesso, durante as quais sequer pensara uma vez que fosse em “Feedback” ou Machado de Assis, estava eu aprumado sobre a carteira, pela primeira vez desde o início da aula honestamente empenhado em ler o conto do Bruxo, conforme determinação da professora - determinação sempre discretamente reforçada pelo movimento característico da troca de canetas seguida por anotações na lista de presença...
“Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia...”
Logo nas primeiras linhas me interrompo, surpreso: “eu conheço isto!”. Conhecia do Cinema (antes, da TV)... bastou para que minha curiosidade se acendesse, e eu fosse enfim deslizando pelo texto...algum traço – que ainda não me era nítido - no fluir daquelas linhas prendeu fortemente minha atenção...era, viria a identificar tempos depois, o estilo elegantemente bem humorado do autor...uma tonalidade que, se por um lado despontava patentemente irônica, por outro não chegava sequer a resvalar em acidez...e estes predicados conduzidos por um modelo de narrativa que conversava com o leitor(!) sem que o fio do enredo se perdesse de vista.
Havia também a descrição da cidade...com precisão e graça muito mais vivas que no “Lucíola”, do J de Alencar...Machado de Assis escrevia sobre ruas que me eram conhecidas desde criança, com uma familiaridade fluente, convidativa ...Era o século XIX reconstruído naturalmente na minha imaginação, com sobras de referências.
Lá pelo meio do texto eu já me encontrava perfeitamente encantando. Ainda levantei os olhos, desta vez quase que involuntariamente para captar a professora. Ela, na semi imobilidade habitual daquelas horas, escrevendo compenetradamente, de olhos baixos, nem deu por mim e meu olhar ligeiramente atônito (“a ‘Feedback’ havia falado dele...do Machado...”).
Retomo a leitura. Ao fim da última linha, suspendo a respiração com um ponto de interrogação (assediado ferozmente por outro de exclamação) sobre a cabeça....Como assim????!!!!”
Olhei de relance mais uma vez para a mesa da “Feedback” – ela permanecia imóvel, cabeça baixa, apenas a mão com a caneta movendo-se sobre o papel. Reli o parágrafo.
Cumpre lembrar que àquela altura, eu então me encontrava num estado quase espiritual de isolamento...mal me dava conta do que sucedia ao redor...ocorre-me agora vagamente o reborbulhar de risinhos abafados entre os colegas, e a “Feedback” dirigindo-se uma e outra vez à turma com a gravidade característica...mas eu permanecia alheio.
Ao fim, éramos tão-somente Vilela, Camilo e eu, no vestíbulo de uma aprazível residência em Botafogo, no Rio de Janeiro do séc XIX.
Nunca tinha lido nada sequer parecido. Uma dissonância redonda entre aquilo e o estilo construtivo de narrativas ao qual eu me acostumara até ali: quase todas, mesmo quando evidentemente engenhosas - caso dos romances da Ágatha Christie - continham rodopios mais ou menos mirabolantes de enredo, redundando em finalizações categoricamente imprevistas, umas mais, outras menos inverossímeis. Quando não, o final trágico era, pelo contrário, desde as primeiras linhas antevisto, ou facilmente pressentido, de modo que a força do impacto ficava por conta das implicações de vieses morais da tragédia.
Na “Cartomante”, o desenlace que não se prevê sob hipótese alguma é justamente o que jaz, durante quase toda a narrativa, plenamente desvelado “sob o nariz” do leitor. Ah...e ainda havia o sutil toque de humor negro no ponto mais alto da trama, à exceção do episódio final: “Ragazzo Innamorato”... (Não muitos anos após, relembrando a forte impressão desta leitura, ocorreria-me uma das pérolas do “pensador-humorista” Falcão: “Há males que vem para o mal” ).
Mais uma vez levantei os olhos, já então lentamente, buscando a professora. Uma amálgama de sentimentos que nem mesmo hoje eu sei se consigo discernir: Gratidão...Arrependimento...Admiração...
Carolina “Feedback” finalmente levantou os seus e flagrou os meus, fixos nela. Desconfiada, franziu ainda mais o cenho e fez uns movimentos rápidos com o queixo, erguendo-o 2 vezes, como se inquirisse: “Perdeu alguma coisa aqui?!”
Antes que ela relasse a mão na esferográfica vermelha, abaixei a cabeça – e sorri.