Minha fonte, meu cristal

Março de 2017

Uma cliente entrou em minha loja hoje, quinta-feira e me disse: “Viu que tem uma pegada de criança aqui no chão? ” Expliquei vagamente o porquê dela ali e percebi que chegara a hora de exercitar minha escrita, coisa que mesmo sem saber fazer direito gosto um tanto de fazê-lo.

Meus amigos, peço a mesma paciência que já pedi outras vezes, principalmente com os erros concordantes e a inexperiência de um não escritor. Minha intenção é compartilhar o momento deliciosamente inusitado ao qual tive o grato merecimento de viver (e agora reviver).

Então vamos lá.

Eu tenho uma pequena fonte, presente de grandes amigos ha algum tempo, a qual nutro grande apreço, razão pela qual a trouxe para minha loja quando a inaugurei.

Quase todos os clientes que aqui entram comentam da beleza dela, mas contarei um caso acontecido, num sábado, e novamente com uma protagonista em tenra idade.

Ela estava com os pais na loja vizinha à minha, onde, no finalzinho do expediente diversas pessoas estavam confraternizando alguma coisa. Apareceu sozinha à porta, colocou a cabeça dela à vista, ou parte dela) pois se “escondia” atrás da parte fixa da porta (de vidro...transparente). Olhava com interesse para dentro, esquadrinhando tudo que a vista podia ver. Parei com o que estava fazendo e fiquei aqui no meu canto admirando-a, sem dizer uma palavra, e torcendo para que ela não notasse que eu a tinha visto. Pouco a pouco foi-se distanciando do “esconderijo”, ao ponto de ficar em pé na porta, já na parte de dentro. Descalça, Vestia um short e uma camisetinha que deveriam ser originalmente brancos, já repaginados pelas correrias e brincadeiras do lado de fora.

Percebi claramente quando seus olhos pousaram em minha fonte. Seus olhinhos brilharam... foi neste momento que ela me viu sentado à mesa do caixa. Para não a assustar, falei um “OI” e um “BOM DIA”, bem baixinho, de forma que minha voz não parecesse assustadora (tenho voz de roceiro, aquele roceiro lá no interiorzão de Minas, que fala pausado e arrastado (o que adoro em mim), mas não acredito que seja normalmente assustadora, mas em todo caso...).

Não adiantou. Virou as costas e desceu apressadamente o degrau de entrada da minha loja, tão rápido que até aventei uma possível queda, o que graças a Deus não aconteceu.

Passados alguns minutos, vem ela, no colo do pai, e antes mesmo dele entrar totalmente na loja, apontou imediatamente para a fonte e disse “olha ela lá! ”. O pai me cumprimentou e a colocou no chão. Já viram aqueles carrinhos de corda, em que a gente dá corda segurando a rodinha para ela não disparar e quando o coloca no chão, ele sai a mil por hora? Assim foi aquele “carrinho” de uns três anos, mais ou menos. Em dois tempos já estava ao lado da fonte, brincando com as pedrinhas brancas que ficam dentro dela.

Aí vocês imaginam. A rua da minha loja é muito movimentada por carros, ela descalça, andando lá fora para todo lado, o piso da minha loja é de porcelanato branco, ela mexendo na água da fonte, tirando e colocando as pedrinhas...já imaginou o que aconteceu, né? Uma sujeira só. Como era o pai que estava com ela e não a mãe, nem se apercebeu disso. Continuou olhando a loja inadvertidamente, com claro propósito de passar o tempo por conta do desejo da filha em conhecer minha fonte.

Neste meio tempo chega a mãe, vê o acontecido e diz “Meu Deus do Céu, que bagunça! Desculpa moço! "Renato!" - disse - "Não viu o que sua filha está fazendo?". Não disse rispidamente, mas com aquela voz que se subentende-se: “homens…pelamordedeus! ” - Continuou: “O senhor tem um pano aí? Desculpe-nos”. Respondi de pronto que não tinha problema algum, que já ia limpar a loja mesmo. Uma meia verdade, pois já o tinha feito pela manhã e só voltaria a fazê-lo na segunda. (Mas naquele dia o faria novamente de bom grado, dada a alegria com que a filha dela brincava com as pedrinhas dentro d’água). Tranquilizou-se com minha tranquilidade, pegou-a no colo, mesmo sob infantis protestos, a levou de volta à loja vizinha.

Peguei o pano e à medida que ia limpando ao lado da fonte lembrava-me da felicidade dela. Só isso já seria o suficiente para meu dia ficar num bom astral. Voltei aos meus afazeres. Eis que aparece o pai novamente com ela, já não a carregava, veio com as próprias pernas, com o pai e mais uma pessoa a acompanhando. Fez o percurso da porta até a fonte me encarando, como se perguntasse: “posso continuar de onde me obrigaram a parar? ”

O pai já não entrou, ficou lá fora conversando com essa terceira pessoa. Fui me aproximando dela bem devagarzinho e falei: “que barulhinho gostoso que esta fonte faz, né? ”

Ela olhou para mim, simplesmente me ofereceu a pedrinha que já estava dentro da da sua mão. A peguei e comecei a rolá-la entre as duas mãos, como se estivesse moldando um pão de queijo (sou mineiro, uai. É lógico que a comparação seria com o "nosso" pão!). Ela pegou outra e imitou-me, observando a água pingando da sua mão... mais um tanto de sujeira...e o pai longe, nem percebendo nosso diálogo.

Dentro da fonte, além das pedras brancas, há um pequeno cristal, outro presente, que também guardo com carinho, de uns amigos lá de Piranga.

Pois bem, como ela não o tinha visto, e como gosto muito de brincar com meus pequenos (e temporários) amiguinhos, (apenas brincadeiras que os fazem pensar, por exemplo, imaginarem e se perguntar: “como ele fez isso? ”). Uma coisa que mais prezo, e que me faz ter facilidade com crianças é o respeito que tenho por elas e por isso as trato como iguais a mim, como se tivessem a mesma idade que eu.

Voltando ao cristal, o peguei sem que ela visse, coloquei escondido atrás da fonte e comecei a brincadeira:

Com a pedra branca que ela tinha me dado, bem à mostra, falei: “quer ver como vou fazer esta pedra ficar clarinha? ” Fechei a mão direita como se estivesse fechando a pedra dentro dela (mas estava na esquerda). Enquanto molhava a pedra na água que jorrava, troquei silenciosamente a pedra pelo cristal. Voltei com a mão direita ainda fechada (e ela acompanhando-a todo o tempo), fechei as duas mãos, agora com o cristal dentro, e fui “modelando o pão de queijo”. Quando abri a mão e ela viu o cristal, seus olhinhos arregalaram. Olhava para mim, olhava para o cristal, para mim de novo, com um misto de incredulidade e fascinação. Para mim foi o máximo! Deliciei-me com aquele momento...

Imaginem o que veio a seguir:

Ela começou a pegar pedra por pedra rolar na mão e, nada! Pegava outra, fazia o mesmo e nada, olhava para o cristal na minha mão, pegava outra.... Foi tirando uma a uma e colocando ao lado da fonte para não correr o risco de pegar a mesma. Quando já estava no finalzinho, percebi a frustração no olhar. ”Se ele conseguiu, porque não consigo? ” Deve ter pensado. Pus meus neurônios para trabalhar o mais rápido possível. Tinha que arrumar uma forma de consertar a situação, pois minha intenção era de alegrar..., mas como? Aí veio a inspiração!

“Minha mão é muito maior que a sua”, - disse, “eu consigo segurar a pedra inteirinha dentro dela e você não” - a dela era muito miudinha! – “Vamos fazer o seguinte: vou pegar um paninho (tenho aqueles amarelinhos que absorvem bem a água) você coloca a pedra dentro dele a gente enrola nele, quem sabe assim dá certo? “ Ela gostou imediatamente da ideia. Peguei novamente o cristal, segurei-o na mão por baixo do pano e deixei que ela colocasse uma branquinha dentro. Enrolei o pano com a outra mão, só que agora ao contrário, ficando o cristal aprisionado dentro do pano salvador e a branquinha dentro da minha mão. Enrolei bem direitinho para que ela não sentisse a diferença da textura.

Só vendo mesmo para entender (difícil imaginar) a cara de ansiedade dela, na sua tentativa de refazer o feito de transmutar a pedra em cristal, ou por outra, limpar a pedra até ficar transparente. “ Pronto! Acho que já deu” - disse. – “Abra o pano para vermos se funcionou” Ela foi desenrolando bem devagarzinho, como se tivesse receio do fracasso...e Voilà! Caiu do pano meu querido e reluzente cristal! Ela soltou um grito de felicidade tão lindo, (e alto) que seu pai finalmente percebeu que havia uma filha dele dentro da loja e entrara para resgatá-la.

Não tive coragem nem de pensar na possibilidade de falar a verdade, pois a alegria dela foi muito grande!

Tentei dissuadi-la de que não funcionava com qualquer pedra, somente com as minhas, da minha fonte. (O que o pai deve ter entendido quase nada). Disse: “Olha, acho que isso só funciona na minha fonte, viu? ”. Acho que atingi meu intento.

Como não podia dar meu cristalzinho a ela (era meu presente) – disse: “Vou deixar esta que ficou clarinha bem no meio da minha fonte, agora ela vai ficar muito mais linda ainda, né”? Perguntei se ela queria uma branquinha. Ela riu acenando com a cabeça. Deixei que ela escolhesse uma (temendo que resolvesse mudar de ideia e pegar o cristal ou se lembrar do "primeiro" cristal limpo... não pegou nem lembrou, ufa!)

Saiu da loja muito, mas muito mais feliz do que quando entrou, nas mãos levava sua pedrinha...mágica, devia pensar.

Voltando ao cotidiano (se é que é possível depois disso) fui limpar o chão... só aí percebi, da fonte até a porta haviam pegadas daquele serzinho, que igual a tantos outros, me faz ver como a felicidade é simples. Não requer nada além de imaginação, simplicidade, gentileza...e um toque de magia.

Limpei todo o chão, mas uma pegada deixei intacta...por dó em apagar aquele singelo vestígio do acontecido, ou talvez para me lembrar de talvez uma hora escreveria sobre isso. Minha cliente resolveu para mim. Mesmo agora, no final da escrita ainda reluto em apagá-la. Quem sabe o faça hoje...

Quem sabe...

PS 2023: Ainda guardo a fotografia daquela impressão de um pezinho gravado no chão de onde fora minha loja!

Jaider Castro
Enviado por Jaider Castro em 16/01/2023
Reeditado em 16/01/2023
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