Chuva
“Você que tem medo de chuva/Você não é nem de papel/Muito menos feito de açúcar/Ou algo parecido com mel”. Esses versos adocicados revelam o deleite do autor ao se encontrar com o fenômeno meteorológico. O que pode ser um tormento para alguns, cujo frio desabrigo até mesmo as cálidas rimas de um forró pé-de-serra não conseguem aquecer, para os poetas que dividem a atenção entre a temperatura da xícara de chá e o fio da ponta do lápis, toda essa água que cai pode ser uma fonte de inspiração estética. “Para nunca mais chorar/Para nunca mais cho, chuva!”. Vocês perceberam? Perceberam a prosódia simulando o som da chuva caindo? Entre mais um giro do lápis e um gole na xícara, sob o cobertor o autor exclama “eureka!” ao descobrir um modo de evitar a clássica onomatopéia chuá. Genioso, não é?
Ironias à parte, é óbvio que eu não quero denunciar uma suposta insensibilidade do compositor da Falamansa ante às intempéries da chuva. Em verdade, eu me compadeço dele, pois vejo nesses versos muita sensibilidade. Já dizia Aristóteles que a arte consiste no inútil que cede lugar ao útil. Não há motivo de ordem puramente prática, por exemplo, nos inúmeros adornos esculpidos em pedra de uma catedral barroca. O prédio continuaria em pé, tanto faz como tanto fez, monolítico e austero, e os vitrais bem poderiam ser substituídos por vidraças foscas ou transparentes ao lugar das personalidades bíblicas caleidoscopicamente representadas. As imagens de santos poderiam dar lugar ao vazio, e iriam embora junto com os pilares da entrada. Afresco no teto? Para quê? Pode tirar junto do altar e do sacrário. E assim se vai removendo tudo do sagrado sobre a terra até que não sobre mais nada que nos lembre do Alto, e só nos reste o chão debaixo dele.
A razão pela qual nos incomodamos em gastar tempo e energia em tais coisas de serventia nula é porque o serviço à beleza é uma das poucas atividades humanas que se bastam a si mesmas. O artista pode flutuar sobre o momento, como álcool subindo à cabeça, e alcançar as realidades sublimes, muitíssimo longe das necessidades mais imediatas do corpo, que nos condenam à ignorância das infinitas potencialidades da alma. Sumamente, a arte faz uso da nossa parte sensível para nos dessensibilizar, mas sem nunca nos tornar insensíveis.
É por conta desse paradoxo que podemos nos furtar da opressão momentânea e aproveitar a paleta de matizes sensacionais da natureza. O cheiro de terra molhada, os pingos solitários que escapam ao ombro, o brilho do pavimento molhado e o barulho que embala o sono ao final do dia vêm juntos a uma profusão de significados ocultos que preenchem o nosso espírito. Quando se dá conta, o sujeito já está com a água batendo nas narinas, mas não se incomoda, pois já se encontra em outro mundo, onde não há frio nem vento.
A descoberta desses significados é análoga ao fenômeno mesmo. O sol, distintamente, induz à ação, ergue as coisas vivas do solo, fazem-nas voltar diretamente para ele, atraindo toda a atenção à sua coroa fúlgida e majestosa. Já a chuva faz recolher, volta os homens a si e os obrigam a enfrentar o abismo de seus interiores, estáticos. Há quem ouse se aventurar a dentro, mas este não encontra caminho fácil. O dia chuvoso não é uma caminhada sob o prado ensolarado, cuja folhagem gramínea acaricia as canelas indo a uma direção reta e visível, tão simples quão inofensiva. Pelo contrário: o dia chuvoso é uma trilha rumo a uma alameda de corredores arvorados e densos e desníveis traiçoeiros, cujo destino está sempre à espreita. Quem o descobre, ou se descobre, encontra o galeão de ouro posto lá pelo próprio Demiurgo, quando fez chover as suas Leis sobre as cabeças dos aventureiros. Há quem transforme esse tesouro em versos, outros em romance, outros em música.
Porém, convenhamos - e que me perdoem os poetas -, nesse chove-e-chove sem parar, verdadeiro aventureiro é quem levanta das cobertas e se apruma a lavar a louça, comprar pão e faça com que se garanta a manutenção da vida fora dos quartos quando tudo convida à cama; fora dos livros quando se precisa de dinheiro para comprá-los e, principalmente, fora de casa quando o dever chama. E que fique meu lembrete a São Pedro: rogue a Deus para que se cumpra as palavras do poeta e só se “molhe esse povo de alegria”... pelo menos por um tempinho.