Conversa com Millôr centenário

Semana difícil para os conterrâneos, às voltas com os “patriotas” de hospício. Antes de nomear seus ministros, o novo governo conheceu sua oposição, uma massa que, sem ideia muito firme do que queria, resolveu abolir o próprio governo e tocar fogo no parquinho. Era uma festa da Selma que nós entramos por engano. Quando a nação ligou a TV dominical, surgiu aquele mundo paralelo, realidade alternativa violenta coexistindo com aqueles tais ingredientes secretos, formadores do bolo fecal da autocracia estilo Didi Mocó e Recruta Zero com Sargento Tainha e Cabo Setenta do babau. Uma multidão suscitando um salto mortal sem rede, se apegando apenas na rede social de sua própria ignorância e estupidez eletrônica.

Pego de surpresa, o cronista, inocente como o Diabo, apelou para a força de expressão e convocou do além-túmulo um cara chamado Milton Viola Fernandes, nome artístico Millôr Fernandes, buscando nos pensamentos desse intelectual alguma luz, um paralelo na vida pregressa da nação que pudesse facilitar o entendimento da tragicomédia em andamento nos palcos nacionais.

Millôr está com quase cem anos, completando em 26 de agosto da atual temporada de crise. A genialidade é a de sempre, o bom humor e o jeito provocativo continuam firmes.

--- Para quem vou dar entrevista?

--- Para meu portal eletrônico Tribuna do Vale.

--- Quantos anos de batente, essa tal tribuna?

--- Uns dez anos...

--- Eu tenho uma tese: "se um jornal for mesmo independente não dura três meses. Se durar três meses não é independente".

--- É que hoje em dia não precisa ter grana pra botar no ar um jornal eletrônico.

--- Não se usa mais papel? Mesmo assim, nunca esquecer que o papel em que o poeta escreve é mais importante do que sua poesia, o cromo da espada do general é mais importante do que suas intentonas.

--- É sobre quartelada mesmo que gostaria de inquirir o nobre jornalista. Você tem visto as tentativas desesperadas e burlescas do senhor ex-capitão presidente para constituir nova ditadura?

--- É aquilo que eu abordei: só não temos uma ditadura porque até pra isso somos incompetentes. E esse povo do seu tempo, o que vocês alcunham de gado, é o mesmíssimo povaréu da tradicional família por Deus e pela liberdade de se deixar mandar.

--- O que diria para as novas gerações que jamais viveram numa ditadura?

--- A diferença entre uma democracia e um país totalitário é que numa democracia todo mundo reclama, ninguém vive satisfeito. Mas se você perguntar a qualquer cidadão de uma ditadura o que acha do seu país, ele responde sem hesitação: “Não posso me queixar”.

--- Millôr, e esses empresários se bandeando para o novo governo? Até o véi da Havan arrasta suas asas pra o presidente recém eleito.

--- Elementar. Os socialistas são contra o lucro. Os capitalistas são apenas contra o prejuízo.

--- Sobre o Lula, para onde o velho líder vai levar o país?

--- Fui atacado violentamente, quando vivo, por ter criticado Lula. Agora morto, prefiro a discrição, o tal silêncio obsequioso pelo qual fui punido pela Santa Sé do PT por pregar doutrinas estranhas à ortodoxia da esquerda medieval.

--- Sobre o ex-presidente, militar reformado porque cometeu o idiotismo de desenhar de próprio punho um mapa de ataque terrorista aos quartéis e assinar o documento secreto?

--- Se é idiota? Não posso determinar, não tenho CRM para tal. O que sei é que ele é do tipo que ouve uma piada de duplo sentido e não entende nenhum dos dois. Continua além túmulo minha interrogação: até quando seremos governados por pessoas que nem chegam a ser burras?

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 15/01/2023
Código do texto: T7695571
Classificação de conteúdo: seguro