A RÚSTICA TIPOGRAFIA, UMA HISTÓRIA.
Histórias vividas, memorizadas, relembradas e contadas ao longo do tempo. Assim, revirando longínquas lembranças, revisito a rústica, memorável e clássica tipografia Milene. Vejo-a instalada no anexo da residência, na rua Poty, 1052, Crateús-CE, em um comprido e estreito vão de alvenaria, com paredes pintadas de branco, telhado alto, com todos os seus equipamentos e materiais sob as bênçãos de São Jorge, o santo devoto de meu pai. Encostadas nas paredes, divisórias de madeira crua com alguns fardos multicores de papéis branco, azul, verde, amarelo, rosa e jornal. Adiante, duas impressoras manuais, uma grande para impressões de formulários maiores e uma menor para serviços de pequeno formato. As pesadas máquinas de ferro funcionavam com dois rolos de borracha, sempre renovados, que distribuíam a tinta, enquanto era puxado o pesado braço e os tipos, fontes ou letras de metais eram imprensados no fechar da máquina sobre o papel. Adiante, mesas com gavetas onde ficavam guardados todo esse material gráfico, separado em pequenos cômodos para facilitar o seu manuseio, e ainda clichês com a marca de alguns estabelecimentos comerciais e rótulos de bebidas. Sobre a velha mesa redonda, folhas grandes de papel para serem cortadas manualmente a faca, até o tamanho convencionado para a formação de blocos e demais impressos e, se necessário, folhas picotadas, com agulha grossa, numa velha máquina de costura. Os blocos de nota fiscal, após encadernados com a capa colada com grude, preparado artesanalmente com goma caseira, eram obrigatoriamente numerados manualmente numa velha máquina, que sempre apresentava defeito. Do lado, uma grotesca guilhotina para o acabamento final dos serviços. No fundo do salão, vejo meu pequeno irmão Humberto encostado junto à cômoda que guardava as gavetas com um componedor na mão, arrumando aquelas pequenas letras de ferro para formar palavras, num trabalho inteligente e minucioso que exigia concentração, mas feito com boa vontade e muita maestria. Após toda aquela composição, arrumada numa grade de ferro, apertada e colocada cuidadosamente para a impressão. Vem na minha mente, o jornal A Fé, de circulação mensal, de responsabilidade do pároco da cidade, que era impresso com muitas dificuldades e sempre circulando com atraso. Recordo os santinhos das lembrancinhas da primeira comunhão das crianças da cidade e, no final do ano, os variados cartões de natal e ano novo, adquiridos direto da fábrica, expostos à venda na sala da casa, além dos impressos na própria tipografia, com mensagens de boas festas em apropriados cartões brancos. Na máquina de corte, visualizo minha irmã Roseles usando toda a sua força para a tão difícil tarefa. Na grande mesa retangular, meu pai e algum filho ou sobrinho na contagem e mistura dos impressos para o acabamento. Visualizo, ainda, o período eleitoral, trabalho redobrado na impressão de propagandas dos candidatos e das conhecidas chapas de votação, muitas vezes adentrando a madrugada, alumiado pela tênue luz do candeeiro, todos já exaustos pela dureza do cansativo empenho de cumprir o prazo da entrega. Tipografia Milene, a primeira da cidade, humilde empresa familiar, orgulho de um casal, que lutou incansavelmente para a sobrevivência e educação de uma numerosa família, deixando marcas de sobriedade, honestidade, competência e gratidão.