No caótico trânsito

O percurso que faço entre o bairro onde moro e meu

local de trabalho faz com que necessariamente eu atravesse a cidade, razão pela qual o faço de moto, principalmente por três motivos: pelaagilidade no caótico trânsito central (mesmo em época de pandemia), pela economia de combustível e tempo e por não menos importante: meu prazer em andar de moto!

Neste fatídico dia ao qual me disponho a escrever, saí um pouco atrasado, já um tanto apreensivo em função do relógio, agravado pela chuva que insistia em cair desde a noite anterior, e com isso o trânsito torna-se ainda mais caótico do que normalmente o é.

Eis que ao virar à esquerda num cruzamento, o veículo que estava à minha esquerda se “jogou” abruptamente para cima de mim (não faço a mínima ideia o motivo de tal manobra). Por sorte não havia veículo parado no acostamento e assim pude me desviar dele, subindo no meio-fio, que por mais sorte ainda havia um rebaixamento nele. Quando me recobrei do susto, acelerei me emparelhando ao veículo no sinal que fechara logo adiante. Levanteis frente do capacete e falei poucas e “boas” em direção ao motorista, que pelo jeito também não fazia a mínima ideia do porquê da minha braveza. Foi derramamento de raiva!

O que amenizou um pouco o desastre é que não uso palavras de baixo calão em hipótese alguma, independente da situação em que me encontre , herança de meu pai, que abominava e combatia tal prática, porém sempre fui “um prato cheio para a tal da raiva”, atitude com a qual venho batalhando há anos para me desvencilhar ao máximo desta impensada atitude.

Pois bem, a situação estava assim: ele com o vidro fechado e eu gritando do lado de fora: _“Você viu o que fez lá atrás? Quase me jogou ao chão! Que atitude ridícula! Não tem vergonha? Que falta de respeito! ”

Como o vidro era escuro, ainda não tinha visto o rosto do motorista até então. Só sabia ser um homem. Ele então o abriu e só aí pude ver seu rosto. Era um senhor de idade já um pouco avançada. Me encarou (sim, encarou) com um olhar suplicante. Um olhar com um misto de súplica, de apreensão, parecendo cansaço e até mesmo uma pitada de medo. Respondeu simplesmente:

_“Me desculpe”. Um “me desculpe”, frase curta dita em um tom baixíssimo, mas carregada de tristeza, dor e/ou resignação tão grandes que senti um breve calafrio na espinha.

O sinal abriu e acelerei antes dele. Ele ficou parado e só o fez depois que o veículo imediatamente atrás dele buzinou com impaciência. Chegando à Av. do Contorno virei à direita, sentido viaduto floresta enquanto ele à esquerda, tomamos assim rumos opostos.

Foi neste ponto que dei conta de minha agressividade, mesmo sem palavrões, mas dá grande carga de uma raiva inexplicável, desnecessária! Minha memória vislumbrou algo que até então não tinha me dado conta. A placa do carro era de uma cidade do interior. Comecei a imaginar: um homem, em idade avançada, talvez com pouca experiência em trânsitos da capital, dia chuvoso, sabe-se lá qual motivo o impulsionara a estar longe de casa em época de pandemia...sabe-se lá se tal motivo relacionasse à esta mesma pandemia, algum parente, por doença ou talvez pior...e apesar disso estava ali, naquele momento recebendo tamanha energia negativa para cima de si...

Minhas conjeturas fizeram com que eu me imaginasse “estragando” ainda mais o dia de um ser, que ao contrário da minha atitude, se minhas elucubrações estivessem corretas, necessitava era talvez de um apoio, uma força a mais para suportar um possível infortúnio que a vida porventura o tivesse infligindo. Seu olhar (que impregnou minha consciência) dizia algo neste sentido.

Tão logo tais pensamentos vieram à mente, comecei a sentir-me culpado por ser portador de tão nefasta energia. Minha vontade era voltar, pedir desculpas pela minha atitude..., mas como? Onde reencontrá-lo? Estava em pista de sentido único, além de não fazer a mínima ideia do rumo que tomara depois de nos separarmos.

Fui me entristecendo com aqueles pensamentos até que comecei a chorar, pensando no que acabara de fazer. Chorei! E chorei muito durante todo o trajeto até chegar ao meu local de trabalho. Fiquei um tempo ainda de capacete, parado, tentando me equilibrar pelo menos um pouco para permitir me dirigir ao vestiário, o que fiz rapidamente para que ninguém me visse naquele estado. Tirei a capa molhada e vesti o uniforme de trabalho. Ao sair já em direção à loja, sentia um nó na garganta, um peso na consciência, uma vontade ainda maior de chorar, chorar mais e mais. Chorei mais um pouco.

Liguei para minha esposa, relatei parte do acontecido...aí sim, desabei no choro! Desabei e desabafei. Fui para o outro lado da rua, onde só existe um muro e ninguém me veria naquela situação. Ela conseguiu me acalmar um pouco, tanto que consegui trabalhar naquele dia, aos trancos e barrancos, mas consegui.

Ainda hoje me pego pensando: Como me deixei levar por tamanha falta de senso, como me permiti despejar tamanha raiva em outro ser humano, tudo por uma situação, onde todos nós motociclistas sabemos, é de certa forma corriqueira e cotidiana, onde havia me safado sem que nada me acontecesse, nem um arranhãozinho sequer? Onde foram parar minha dignidade e o respeito ao próximo que venho lutando para colocar em minha vida, na minha caminhada neste mundo?

Isto tudo vem me fazendo perceber o quanto os movimentos e momentos atuais têm atuado em nossas vidas, mudando nossa forma de ser, nos forçando a nos endurecer (ou até mesmo nos forçando a mostrar quem verdadeiramente somos - e o quanto precisamos mudar).

Me fazendo perceber o quanto nos deixamos levar por opiniões alheias e a absorvemos como nossas.

Me fazendo perceber também o quanto precisamos nos precaver nos dias de hoje, o quanto devemos nos policiar para que não tenhamos ataques de fúria iguais a este que me permiti protagonizar, do quanto precisamos nos equilibrar nestes tumultuados e cinzentos dias, do quanto precisamos trazer conosco e emanar energias apaziguadoras, do quanto precisamos nos manter o mais longe possível desta devastadora e nefasta energia que se chama raiva.

É na adversidade que nos conhecemos, e é nela que aprendemos a sermos humanos mais humanos, a entender de onde (e como) abrimos portas para tão perniciosa energia, de onde, sem perceber, deixamos com que ela tome conta de nossas atitudes.

Assim se pode concluir com toda certeza, que todo cuidado do mundo nestes dias, nestes pesados e pesarosos dias ainda é muito pouco!

Jaider.

Março de 2021.

Jaider Castro
Enviado por Jaider Castro em 15/01/2023
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