Por medida de segurança
É exatamente o termo que raramente não levamos em questão quando estamos desenvolvendo alguma pesquisa de campo. Mas então quer dizer que vivemos a correr riscos, que somos irresponsáveis? Bom, não é bem assim, devagar com o andor!
Quem se embrenha nos brejos e carrascais, que ascende serras e montanhas, anda afundando os pés nas areias de leitos secos de rios e riachos temporários, está vulnerável a toda sorte de riscos. A medida em que ousamos prospectar lugares inóspitos, admito que há uma íntima relação entre audácia e risco, o que pode gerar a sensação de irresponsabilidade, ainda mais quando estamos lidando com arqueologia e história, onde o prazer da descoberta é o combustível que nos move a todo instante. Em outros casos, o espírito aventureiro nos cega e o retorno ao lugar (posteriormente) é que traz consigo a reflexão e revelação do perigo existente.
Já me deparei com serpentes de toda sorte, guaxinins e raposas “chocas” a defenderem sua prole, perigosas colmeias de abelha, onças, touros, cachorros, penhascos, gente armada querendo saber o que ali se passava, só para servir como pequeno exemplo.
Certa vez subimos a Serra do Algodão, isso nos idos de 2005, no interior do município de Algodão de Jandaíra. Para a empreitada contamos com a colaboração do guia Damázio dos Santos, que gentilmente nos acompanhou. A serra está distante aproximadamente a 2,5km a sudeste da zona urbana de Algodão. Para ascender o gigante magmático, o único caminho seria a face norte e por lá seguimos. Em pouco tempo de caminhada, ainda no sopé da Serra, encontramos um afloramento rochoso com uns sete metros de altura bem no meio do caminho, observando atentamente, percebemos um pequeno painel de pinturas em vermelho voltado para leste, nos dando a impressão de que aquele era realmente o caminho ancestral.
A subida foi tranquila, chegamos a uma capelinha repleta de santos bem no cume. A visão maravilhosa daquela porção do Planalto da Borborema e a brisa que nos tomava só aguçava nossa vontade de alcançar aquela gruta que foi motivo de carta enviada pelo Capitão João Lopes Machado (em Areia) para seu irmão Maximiano Lopes Machado em 1874 relatando uma escavação que o próprio teria realizado na “Furna do Caboclo”, desenterrando até a terceira camada o pavimento da gruta, onde encontrou ossos descomunais, cabelos “com mais de vara de compridos” e uma tanga de palha de cores que se desmanchava ao mais leve contato. Segundo o relato, o Capitão também teria enviado estas informações em carta para o governo da Província.
Da capelinha, temos que descer uma encosta bastante íngreme. Ali imitávamos todos os movimentos do Damázio, observávamos atentamente como se deslocava. Profundo conhecedor da região, nosso guia mais parecia um bode a vencer os obstáculos de pedra que se avizinhavam. Tinha lugar que ele ia e voltava como demonstração. O entusiasmo de estar a cada passo mais próximo não nos deixou compreender a dificuldade e que o desfiladeiro estava ali a nos desafiar. Duas eram as passagens extremamente inclinadas. Ora com as costas na rocha, ora apoiando com as mãos, e os passos iam nos levando até que uma saliência de rocha, o freio e o apoio para que o pé esquerdo não escorregasse e nos tirasse o completo equilíbrio. Devidamente apoiado, um impulso era dado para direita em um salto até alcançar uma pequena plataforma e dali ascender uns dois metros, mas já na “boca” da furna, uma gruta cavada por milênios com 40m de entrada, 12 de altura e 11 de profundidade. O interior da Furna do Caboclo é formado por várias pequenas cavidades, demonstrando que a natureza continua a esculpir o lugar. No chão de areia bem fina estiveram enterrados (ainda deve restar algo intacto?) vestígios de populações indígenas que viveram em nossos sertões, que lugar singular...
Anos depois retornamos ao lugar. Desta feita integrando uma equipe do Laboratório de Arqueologia da UEPB. Descemos com bastante dificuldade e, como garantia, amarramos uma corda num matacão ao lado da capelinha, pelo menos para dar segurança. Pois bem, Prof. Juvandi desiste no meio do caminho e nós continuamos. No retorno... ah o retorno. Apoiei-me na corda, dei alguns passos até que fui fincar o pé (de botas) e ele escorregou levando ao vazio alguns cascalhos e poeira. Olhei para baixo, vi o penhasco, respirei profundo. Naquele momento, descobri finalmente o que só tinha visto no cinema: um verdadeiro filme passando rapidamente em minha mente, transfigurando sentimentos desafiados na dinastia dos que já passaram, talvez seja tolice tentar definir com palavras a epifania daquele instante em um fio suspenso. Um suspiro, uma mão do companheiro que estava à frente, tudo volta ao normal e, da mesma forma que João Machado, o que mais me intriga no lugar é: como podiam ser para ali conduzido os cadáveres?
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