Um presente inusitado
Numa final de tarde de terça, lá pelos idos de 2014, fui a um bairro da minha cidade, o Buritis, levar um dos produtos dos quais comercializo.
Estacionei em frente ao endereço e toquei o interfone. Fui atendido e enquanto esperava meu cliente, olhei à minha volta, pois como diz o ditado, "Creia em Deus, mas tranque o Carro!" Neste cotidiano atribulado que vivemos atualmente, todo cuidado do mundo ainda é pouco.
Neste meu "percurso visual", notei um gari, franzino, com duas vassouras, uma em cada ombro, descendo a rua e assobiando feito um canário que acabara de sentir o romper do dia. Assobiava com prazer! Quando se aproximou, com simpatia puxou conversa. Perguntou a respeito do meu capacete, da moto, cilindrada, beleza, etc., etc. Estava até gostando da espontaneidade e vivacidade daquele rapaz, porém a realidade de estar naquele lugar se fez presente. Minha cliente chegou à portaria e não pudemos continuar o papo.
Enquanto explicava alguns pormenores do produto a ela, ele ficou olhando a moto. Ela agradeceu, pagou e nos despedimos.
Meu recente amigo canário voltou à carga e continuou o papo no mesmo interesse de antes.
A despeito da minha pressa, dei toda a atenção que me era possível fazê-lo naquele momento. Ele sempre com um sorriso largo no rosto, uma felicidade só. Falou de si, de como veio à BH e a quanto tempo mudou para cá. O nome da sua cidade ficou em segundo plano, pois agora, depois de mais de ano não me lembro, só sei ser do interior daqui de Minas mesmo. , trabalhava como gari, mas seu sonho era ser cantor. Disse que sempre teve muita sorte na vida, mas não neste quesito. Elogiei a voz dele (realmente era bonita, musical).
Agradeceu e disse: _"Quer saber de uma coisa? Imagine que virei cantor... e você será minha plateia hoje, viu?" Usou uma das vassouras como microfone, e sem esperar resposta, se preparou para cantar. Inicialmente pensei: Ai, ai...lá vem golpe! Daqui a pouco vem o pedido de um "cafezinho"... "Será que conseguirei me livrar dele fácil?" Pensei...
Cantou! Não imaginam sua voz. Linda! Não sou conhecedor das nuances musicais, mas posso afirmar ser uma das vozes mais belas que já ouvira assim, ao vivo!
Cantou uma canção sertaneja, desconhecida pra mim, mas belíssima. Eu lá, recostado na moto, ouvindo meu show particular, Agora não tão particular mais pois do outro lado da rua alguns pedreiros também pararam o trabalho para escutá-lo, pois sua voz realmente chamava atenção. Assim que acabou, o sorriso largo voltou a estampar seu rosto. Agradeceu-me veemente dizendo-se muito feliz por eu ter tido aquele tempo para escutá-lo.
Gente, ele me agradecendo, vê se pode?
Já estava fazendo cálculos mentais de como estava minha carteira naquele momento (recebi em cheque naquele dia - sim, na época do acontecido ainda se recebia em cheques), vendo o que poderia dividir com ele (que com certeza merecia). Parabenizei-o pela belíssima interpretação e disse que um show daquele merecia ser pago, que tinha pouco, mas fazia questão. Recusou veementemente! Retrucou dizendo que era um presente (acredito que a vergonha pelos meus pensamentos iniciais ficou quase estampada em meu rosto).
Ele, com a mesma rapidez e alegria com que se aproximou de mim quando iniciamos nosso diálogo, despediu já em movimento rua abaixo, pois se demorasse mais algum tempo perderia o transporte que o levaria de volta à central da prefeitura. Agradeceu novamente, disse um "vá com Deus e fique com Ele" e começou novamente a descer a rua, de novo travestido de canário cantador, com aquele assobio gostoso de ouvir.
Acreditam que a cliente que fui visitar apareceu na portaria, me vendo lá ainda, fez-me algumas perguntas sobre outro produto, para que servia, como usar, etc. Quando me despedi dela, ele já tinha virado a esquina. Liguei a moto e saí rapidamente, ainda com a intenção de despedir mais adequadamente, mas já era tarde.
Ficou para mim o carinho, a felicidade e a suavidade da voz daquele moço, que do nada deu-me um presente, que com certeza ficou e ficará gravado na minha memória.
Ps: Lembrava alguns trechos, mas nem quis saber qual música era aquela com a qual me presenteara, pois receava ouvi-la na voz de outra pessoa e perder aquele encanto que ficou em meu coração.