A ROUPA VELHA QUE O TEMPO NOS OBRIGA A USAR
Olho minha pobre imagem refletida no espelho e vejo o amontoado de anos sobrecarregando-me o semblante. Percebo nas rugas e nas linhas murchas um rosário de dores, saudades, lágrimas, risos, alegrias e tristezas que se aglutinaram para formar a ingênua figura que me olha atordoada. O tempo se encarregou de narrar a mambembe história da pele enrugada, dos olhos fundos e mortiços dos lábios finos tão profundamente beijados outrora, mas hoje ignorados e desprezados como dois maracujás secos e quase apodrecidos esquecidos na fruteira.
Noto a existência de rancores recalcados ao longo da vida no meu semblante. Mas também é possível enxergar naquele reflexo sincero perdões e gentilezas em meio aos ressentimentos, ódios que senti e reprimi, aceitações de momentos cuja capacidade e poder de mudar não tinha, lutas internas ingentes que tentei evitar e combates inevitáveis nos quais às vezes caí, às vezes venci, amores sufocados pela indiferença tanto das mulheres que amei quanto das que me amaram e não foram correspondidas.
Vislumbro um eu moldado pelas agruras cotidianas, pelos sorrisos trocados, pelas muitas afeições hoje mortas, pelos abraços trocados e outros tantos apenas pensados e guardados porque não ousei, tudo isso deveras tão próprio da vida, sem dúvidas inerente a qualquer ser humano que deseja viver intensamente, buscar a felicidade e ser feliz em todas as áreas da sociedade. Daí, nesse entremeio, impossível disfarçar as decepções por mim causadas e a mim proporcionadas, muitas foram elas.
O espelho ri de mim, ou talvez seja eu mesmo zombando da vaidade que nasce conosco e vai pouco a pouco perecendo quando descobrimos a sua inutilidade. Ela morre de vez quando a dureza da velhice cobre nosso corpo como uma roupa velha que o tempo nos obriga a usar, queiramos ou não. O espelho é um bofetão no rosto da vaidade. E nunca mente.