AFLICETA I
Hobin Hood Tupiniquim
Hoje eu estou cansada demais. Atendi muita gente. Ainda bem que todas estavam alegres e meu bom humor ajudou.
De vez em quando aparece uma mal humorada, reclamando de tudo - que está cheio; que nunca viu uma coisa dessas; que desrespeito...
Desta forma, eu tenho que me desdobrar para manter a qualidade no atendimento, ser rápida, pensar rápido, fazer tudo correndo, mas dar atenção à paciente.
Quando é uma pessoa conhecida ou é um atendimento de rotina, vai tudo bem. Quando é uma doente com problemas ou uma paciente nova, que já traz um rosário de sofrimentos e dúvidas, a gente tem que parar, respirar, não pensar no tumulto da sala de espera e se concentrar naquela pessoa. Eu acabo me atrasando.
Fica impossível raciocinar quando algumas pacientes reclamam lá fora e a secretária vem avisando.
Para relaxar, eu penso que o dia vai acabar e eu terei feito tudo direitinho, mesmo tendo dado vários foras na minha pobre secretária e uma série de broncas em algumas pessoas mal educadas.
Isso se chama “remar contra a maré. Duro... Não é pra qualquer um.
Hoje estava uma festa na minha sala (ainda bem). Todas alegres, sorridentes, molhando o meu lindo banheiro, sentando nos cantos por não haver mais lugar na sala de espera, vendo televisão e rindo muito.
Enquanto eu atendia um caso sério lá dentro, ouvia as risadas da mulherada.
Ao abrir a porta, eu via todo mundo tranquilo e dizendo que lá estava a maior zona. Elas até disputavam na brincadeira quem iria entrar, pois já havíamos embaralhado os horários marcados.
O que eu podia fazer? Encerrar a consulta de uma paciente, com anos de história patológica pregressa, sem uma definição de seu caso, só porque está passando da hora? Isso é pra psicólogo.
Quanta diferença com o atendimento público! Pessoas que pegam um trem de madrugada, depois de meses que a consulta foi marcada, comem apenas um pãozinho e esperam horas em lugares desconfortáveis, para serem atendidas só Deus sabe como.
E não me digam que estou mentindo. É só entrar a qualquer hora, em qualquer lugar público, aqui no Rio, que vão ver a mesma cena.
Voltando ao meu paraíso particular:
Os representantes de laboratórios farmacêuticos atrapalham um bocado. Eles sabem disso, mas é um mal necessário e até me divertem, tal a satisfação com que chegam. A gente aprende sobre as novas medicações, eles dão amostras grátis e a gente vai levando, desta vez, a favor da maré.
Uma paciente vai para um atendimento e sai de lá com o que eu puder dar. Medicação é cara, tudo é caro, a medicina é cara. Os planos de saúde são caros para os usuários e há gente que deixa de viver só para ter um convênio médico. Pelo menos, se organizam para viver e morrer melhor.
Paciente particular, às vezes, vai com o dinheiro contado do preventivo e da consulta. Eu faço parte da maioria da população de médicos da minha cidade. Quem cobra uma baba pela consulta e tem clientela pra isso, pode se considerar elite, ou seja, uma minoria.
Ficamos tolhidos, quando tentamos pesquisar uma doença ou fazer um check up numa paciente, porque os exames complementares são caríssimos.
Daí, a gente seleciona o básico, o imprescindível e tenta ser o mais eficiente possível. Temos que improvisar, temos que ser artistas.
É como na guerra: Salva-se quem tiver mais condição de sobreviver.
Eu procuro deixar todas bem, mas, para isso, me desdobro.
Meu pai me deu uma lição, que até hoje lembro. Um dia ele comprou pra mim um disco de vinil do Pink Floyd (que estava na moda há um século atrás) e escreveu na capa : “Tenha tenacidade e perseverança que vencerá“. E me disse:
“Leila, eu escrevi isso aqui, mas quero que aprenda uma coisa. Nunca se prostitua na profissão que almeja".
Acho que é por aí. Atuar em medicina é não se deixar prostituir. Hoje entendo o que ele quis dizer.
Neste momento, em minha mente, voltei a 1983. Eu era uma residente de um hospital público e tinha dois anos de formada. No ambulatório de ginecologia eu ficava até tarde trabalhando.
Todos os médicos faziam seu horário, mas eu só saía depois de atender a última. Era pena misturada com solidariedade. Aquelas mulheres eram mulheres como eu, mas não tinham a menor chance de terem saúde como eu. Mulheres bonitas, jovens, cheias de problemas e eu sabia que não conseguiria resolver nem metade das doenças.
Assisti muita injustiça, muita safadeza com aquele povo. Eu teria que fazer um livro sobre as atrocidades que eu presenciei ou soube. Todas estão aqui, muito bem registradas na minha cabeça doida.
Numa tarde de verão, um sol lindo e eu lá, naquele hospital, tentando aprender tudo que podia e tentando ajudar aquele povo. Foi quando ouvimos um estardalhaço no pátio.
Uma pediatra tinha acabado de ser assaltada na porta do hospital pelo pai de uma criança que ela tinha atendido logo antes do ocorrido.
Era para se revoltar, não é?
Não...
Depois fiquei sabendo a versão original. Ela atendeu uma criança, que estava muito mal, e prescreveu um antibiótico qualquer, porém caro. O pai pediu que o ajudasse a conseguir a medicação lá mesmo, na farmácia do ambulatório, por não ter a menor condição de a comprar.
Ela falou que não tínhamos o remédio, que sua obrigação era apenas receitar e que ele se virasse para tratar o filho.
Ele a esperou na saída e a assaltou. Provavelmente nem portava arma, mas a pegou de surpresa e falou: “Dona, eu sou pobre, mas nunca assaltei ninguém. Estou desesperado e por meu filho eu vou roubar. A pessoa que merece ser assaltada é a senhora, que roubou a minha dignidade lá naquela consulta”.
Eu ouvi isso dela, ninguém me falou. Talvez hoje ela seja chefe de algum lugar, uma professora ou uma excelente profissional. Espero que ela não tenha se esquecido deste dia e que tenha entendido o recado daquele homem.
Eu ia falar sobre a afliceta! Viajei longe!
Outra hora eu continuo...
Leila Marinho Lage
Rio, 2006