Quem dera tivesse a disposição do Dirceu, meu vizinho. Ele adora um movimento. Ao contrário de mim que vivo dependente dos controles: o remoto e o interior.
Um homem de meia idade, bem vestido, educado, mas que vive em companhia da solidão, como ninguém. Ou em sua própria companhia, quem sabe? Freud explica. Seu hobby predileto é ouvir música. Seu temperamento diário meço a partir da escolha do gênero, pois Dirceu é eclético. Tanto que fico me perguntando se ele é de verdade ou fruto da minha imaginação fértil, vai do "au au" da Sonza ao Frank Sinatra, num mísero intervalo de minutos. Não que isso me assuste, meu humor também tem esses altos e baixos.
Hoje mesmo ele "chorava-cantando" que "dormiu na praça, pensando nela". A tecla de repetição foi ativada e 6 ou 7 vezes interpetrou a canção. Mas eram 9 da manhã, e só. E o dia era longo.
As 11 horas, já arranhava um inglês bem conceitual. As palavras que conhecia da letra da música de Roxette eram pronunciadas em tom alto e agudo como um lobo uivando no deserto. Daí me pergunto: já vi um lobo uivando no deserto? Não. Mas se uivasse naquela intensa temperatura, seria assim, suspeito. No meio do caminho ele acab esquecendo a soprano que mora nele e assume o tenor tipo Pavarotti em dia de gripe.
De repente a música acaba dando lugar a uma conversa de janela:
- Oi coisa linda. Delícia negra de Queluz de Minas. Era uma voz imitando um bebê, bem maternal. Pensei logo: deu lance! De estar ao telefone. Mas minhas expectativas foram frustradas pelo...
- Xispa daí, rapariga. Sai de cima da churrasqueira. Onde já se viu? Felina abusada! Nem toda gata arranha, mas o prédio, bem longe de ser um arranha-céu, permite que ouçamos, na maioria das vezes, as emoções expressas oralmente.
A chuva, que não dá trégua nesse mês de janeiro, veio fazer seu papel de estraga prazeres. E o pancadão veio em dois tempos. Primeiro como fenômeno da natureza e segundo como gosto musical de Dirceu que agora ouve Maluma com Anitta num "envolver". Será que ele faz a performance da música tal como as bailarinas da Anitta?
E pra terminar o dia um Michael Jackson, o Rei do Pop, num "remenber the time".
Vocês devem estar (do outro lado) se perguntando se todos os dias é a mesma coisa. Mas não saberia dizer. Hoje ele era este homem de gosto eclético que (na minha mente) faz performances super descoladas de hits que são "Top" das estações de rádio. Diria que se sim, não ouço ou vejo. O grande lance é que a ociosidade que se instala no intervalo entre fim de dezembro e janeiro implica em desacelar e, quando isso acontece, de algum modo, eu "enxergo" um mundo ao meu redor. O problema maior é que a pressa, ofusca essa grandiosidade reluzente. O que de certa forma é bom... Não é?