O sequestro
O sequestro
Nove horas da manhã de uma segunda feira, e eu ainda de ressaca, esparramado no sofá do escritório, contemplando o quadro de São Jorge, meu santo guerreiro. Também fumando o meu primeiro cigarro do dia para aliviar o tédio e satisfazer o meu vício. Aí toca a campainha. Pensei com meus botões:
- Qual o corno que procuraria, em plena manhã de segunda feira, um detetive particular especializado em investigar caso de adultério?
Refletindo melhor, o mundo deve estar repleto de cornos sem noção de tempo. Dei a última tragada e desfiz do cigarro antes de me dirigir até a porta. Mal torci a maçaneta, um homem corpulento empurrou a porta contra meu corpo com uma intensidade que quase me derrubou. O cara estava emocionalmente desnorteado, totalmente fora de controle. Não parecia alguém que estava atrás de um detetive para investigar uma aventura amorosa da esposa. Assim que ele adentrou pelo escritório, foi logo me entregando um bilhete e implorando ajuda. Pedi para se acalmar e ofereci uma cadeira para se sentar. No início ele relutou em aceitar a minha gentileza, mas depois que insisti energicamente, jogou-se no sofá e desabou em prantos. Nunca tinha presenciado algo tão patético e desesperador. Nem nos vinte anos que trabalhei como inspetor de policia da delegacia de homicídios. Ele poderia ser mais um chifrudo, porém veio ao meu escritório por um motivo bem mais grave que uma simples traição conjugal. Nenhum corno deixa transparecer o seu sofrimento diante de um estranho.
Quando comecei a ler o bilhete, foi que realmente compreendi o desespero daquele homem de meia idade. Seu filho de 14 anos, Paulo Cesar de Mascarenhas Junior, o PC Junior, um gênio precoce da informática, tinha sido sequestrado poucas horas antes, no caminho para escola. Preparei uma dose dupla de uísque e pedi a ele que bebesse de uma só golada. Disse-lhe que a bebida ia ajudá-lo a se acalmar. E aí sim, a gente poderia iniciar a nossa conversa. Ele me obedeceu prontamente. Depois eu soltei a clássica pergunta:
- Em que posso ser útil?
Começou falando do bilhete, que agora estava em minhas mãos. Um desconhecido tinha entregado o bilhete ao seu mordomo, antes das sete. Ao lê-lo, o meu provável cliente, ligou para escola onde o seu filho estuda. Depois que teve a confirmação que o garoto não tinha aparecido para assistir as aulas, ele entrou em parafuso. O fato de o sequestrador ameaçar matar o jovem se alguém envolvesse a polícia, o fez me procurar para ser o mensageiro na transação do resgate. O valor do resgate exigido era de um milhão de dólares, valor que obviamente um ricaço como ele jamais se recusaria a pagar pela vida de seu único filho. A certeza disto foi o fato de me procurar ao invés da polícia. A sua preocupação era com a preservação da vida e a integridade física do filho. Afinal, só sendo um completo idiota para acreditar na palavra de algum bandido. Com a minha experiência de policial, eu posso afirmar que sequestrador de criança é a pior espécie de gente que existe na face da Terra. Confesso que já apaguei alguns deles, e juro que nunca sofri de arrependimento por matar sequestrador. O meu arrependimento foi ter livrado a cara de um deles durante uma troca de tiros. Por causa deste vacilo, eu permiti que um bandido filho da puta tirasse a vida do meu companheiro de profissão. Eu, Anderli Ribeiro, estou condenado a conviver com a culpa da morte do meu único amigo . Pensei que largando a polícia e abraçando uma garrafa de uísque, eu aliviaria este meu sofrimento. Mas não, estou fadado a carregar um defunto na minha consciência até o fim da minha existência. Talvez, quem sabe , ajudando este pai a resgatar o seu filho, eu possa pelo menos aliviar o meu sentimento de culpa.
Após ler atentamente o bilhete, perguntei ao homem por que resolveu me procurar em meu escritório. Ele disse que me encontrou através de um anúncio do jornal. E que precisava de um profissional para fazer a entrega do resgaste no local indicado no bilhete. Uma banca de jornal localizada em frente à Estação ferroviária do Bom Retiro. Ele não achou sensato envolver parentes ou amigos. Alguém poderia, na intenção de ajudar, querer acionar a polícia. Contratar um detetive particular, no seu entendimento, foi a única solução que encontrou em momento de desespero. Estava disposto a pagar muito bem pela arriscada tarefa . Óbvio que aceitei de cara o trabalho, para um ex-policial da delegacia de homicídios, a tarefa não seria difícil. Perguntei ao homem, agora meu cliente, como ele ia conseguir levantar a grana solicitada no bilhete pelos sequestradores. Um milhão de dólares em um curto espaço de tempo é quase impossível. Afinal, só um contraventor teria em mãos uma quantia tão grande em moeda estrangeira. Ele desconversou, e de forma enérgica. Disse para eu só me preocupar com a tarefa da entrega. Levantar a grana era problema dele. Ele me entregaria amanhã, as nove horas, em meu escritório, uma maleta 007 com a quantia do resgate. A hora da entrega na banca de revista, assinalada no bilhete, era dez e cinquenta e cinco. Sem questionar mais nada, antes de me despedir do cliente, tentei tranquilizá-lo, dizendo que eu era um ex-policial que tinha muita experiência em sequestros. Ele me agradeceu, e em seguida foi embora. Pela janela, observei que dois homens o esperavam encostado em uma BMW preta. Provavelmente o seu motorista e o seu segurança particular.
Depois que o meu cliente saiu, peguei o bilhete que estava sobre a mesa e voltei a lê-lo com mais calma. Foi quando a ficha começou a cair. Banca de jornal, em frente à estação do Bom Retiro, dez e cinquenta e cinco da manhã... Estranho! Largar um milhão de dólares em um lugar movimentadíssimo da cidade em horário de pico. Uma banca de jornal? Porque não pediram para deixar a grana em uma lixeira próxima a uma rodovia? De repente, a imagem de uma mulher me veio à cabeça. Angélica Zuleika! Administradora de todas as bancas de jornal do bairro do Bom Retiro. Angélica foi prostituta e amante do maior contraventor da região. Em um passado já distante, quando ainda rodava bolsinha pelas imediações da Estação do Bom Retiro. Angélica vivia na mira da polícia. Era a rainha da contravenção. Roubava, traficava e também gerenciava pontos do jogo de bicho. Foi trabalhando para banqueiros do jogo do bicho que ela progrediu na vida. Como era uma mulher muito bonita e atraente, conseguiu conquistar o coração do velho manda chuva da região, ligado a máfia Siciliana. Antes de morrer, aos 87 anos, o velho capo, num sinal de profunda gratidão, deixou todas as bancas de jornais do bairro para ela administrar. Até hoje, ela continua administrando as bancas, e certamente ainda tem forte ligação com a máfia. Estou com a ligeira sensação que a minha tarefa não vai ser tão fácil como eu pensei. Os caras que sequestraram o PC júnior não são simples bandidos atrás de grana. São membros de uma organização criminosa que possui gente infiltrada na polícia. Terei que agir com muita inteligência e astúcia, então nem eu nem o garoto sairemos com vida dessa aventura. O que eu farei agora, vai ser pegar o meu velho fusca para ir atrás de Angélica Zuleika, a cascudona do Bom Retiro. Terei que agir rápido, porque o relógio agora é o meu maior inimigo.
Chegando ao Bom Retiro fui direto até a banca de jornal em que teria que deixar a maleta com dinheiro. Para minha grata surpresa, encontrei a própria Angélica trabalhando na banca. Quando a vi, com o rosto cheio de rugas, cabelos brancos e o corpo curvado, falei comigo:
- Nenhum ser vivo resiste às perversidades do tempo.
Eu me aproximei dela e, fingindo interessado em comprar uma revista, comecei a puxar conversa. Ela sendo uma mulher muito astuta, logo percebeu que eu não estava ali para comprar revistas, e sim fazer uma investigação. Com seu faro de pastor alemão, logo percebeu que eu era um detetive. Ela não se fez de desentendida, e sem rodeios foi logo falando:
- Eu não trafico, não faço jogo e também não trepo mais. Agora sou uma empresária honesta. O que você deseja? Certamente não é esta revista de moda feminina que você está folheando.
Ela me desarmou... O jeito foi ir direto ao assunto. Perguntei sobre o PC júnior. Para a minha surpresa, ela não se fez de desentendida, e me perguntou quem eu era, e o que pretendia conseguir com ela. Eu prontamente disse que era um ex-policial e estava ali para tentar descobrir o paradeiro do garoto. Ela soltou uma estrondosa gargalhada e em seguida me chamou de louco. Perguntou se eu sabia com quem eu estava me metendo. Não me fiz de bobo, disse que sabia que a máfia estava por trás de tudo e que ela poderia me ajudar a resgatar o garoto em troca de muita grana. Agindo como toda puta, foi logo perguntando quanto eu pagaria por uma informação valiosa. Eu respondi:
- Meio milhão de dólares. Valor correspondente à metade dos dólares do resgate.
Ela me perguntou pela outra metade. Aí respondi de imediato:
- Eu estou disposto a arriscar o meu pescoço pelo outro meio milhão de dólares. Você só precisa-me dizer onde fica localizado o cativeiro do garoto.
Ela soltou outra gargalhada e novamente me chamou de louco. Eu disse que era louco sim, mas por dinheiro. Nós dois rimos feito dois bobos. Neste momento senti que a nossa conversa ia render frutos. Ela queria a garantia que não ia ser passada para trás depois que me desse à exata localização do cativeiro. Eu propus como garantia, que depois que eu pegasse o garoto, o levaria para casa dela. Com a minha proposta, ela se sentiu confiante, mais ainda tinha um grande problema. Como driblar a máfia depois de regatar o garoto das mãos dos sequestradores? O plano teria que ser perfeito, então na capa do jornal do dia seguinte iria aparecer estampado as fotos de três defuntos. Uma de um menino prodígio, outra de uma puta velha, e uma terceira de um detetive alcoólatra...
Já passava das treze horas, e comecei a sentir fome. Convidei Angélica para almoçar. Ela prontamente aceitou e sugeriu uma cantina italiana que ficava a duas quadras da Estação. Enquanto esperávamos a chegada do nosso pedido, Angélica pegou a minha mão para ler. Além de puta e contraventora, aquela mulher também era uma vidente. Eu, devoto de São Jorge, fiquei muito curioso e acabei deixando aquela puta travestida de cigana ler a minha mão. De repente ela, num gesto brusco, soltou a minha mão. Falando num tom quase apocalíptico , pediu-me para tomar muito cuidado. Que eu estava correndo risco de vida e que ela não iria poder fazer nada para me ajudar. Confesso que quase soltei uma risada. Para quem está planejando dar uma rasteira na máfia, o que ele acabara de fazer foi à previsão do óbvio. Quando chegou o meu espaguete a bolonhesa eu o devorei como se fosse à minha última refeição. Angélica comeu uma pizza de chocolate. E ainda pediu uma mousse de chocolate, como sobremesa. Ela me confessou que o chocolate era o único vício que adquiriu durante a vida. O que eu achei estranho. Boa parte das mulheres viram prostitutas só para sustentar o vício das drogas. Angélica Zuleika foi a primeira puta chocólatra que conheci na vida. Antes de terminar o almoço, Angélica pediu ao garçom uma caneta emprestada. Em um pedaço de guardanapo, escreveu o endereço do cativeiro e também o número do telefone de sua casa. Assim que saímos do restaurante, Angélica me deu um beijo na boca de despedida. Logo em seguida, desapareceu em meio à multidão.
Assim que me recompus do beijo inesperado, peguei meu fusca para ir até o local do cativeiro. Porém, resolvi passar primeiro pelo meu escritório para pegar a minha pistola nove milímetros com numeração raspada. Com essa arma, ajudei muito bandido a se mudar para o inferno bem mais cedo. Claro, tive a ajuda do meu santo guerreiro. Estacionei o meu carro uma quadra antes do endereço escrito no guardanapo. Quando cheguei ao local eu tratei logo de subir em uma árvore localizada bem em frente a casa. Do alto da árvore, eu tinha uma vista privilegiada da janela da sala, que por descuido estava aberta. Que merda de sequestrador deixaria uma janela de cativeiro aberta com um refém dentro. Comecei a ficar encucado. Quando avistei o PC Junior comendo pipoca , jogando vídeo game com uma senhora que aparentava uns setenta anos, percebi que algo fora do padrão estava acontecendo. Desci da árvore e pulei o muro da casa. Encostei meu ouvido no buraco da fechadura para ouvir o que os dois conversavam. Para minha surpresa, descobri que aquele sequestro era uma farsa. O PC Junior além de se tornar precocemente um gênio da informática, também se tornara um gênio do crime. Ele forjou, com a ajuda da máfia Siciliana, o seu próprio sequestro para arrancar dinheiro do pai. Que filho da puta! É nessa hora que agradeço ao Senhor meu Deus por eu não ter colocado filho no mundo.
Voltei para o meu escritório e fui pesquisar na internet. Fui procurar alguma referência do meu cliente e também do seu filho. Descobri que o pai era um milionário, dono de várias agências de turismo e casas de câmbio. Na verdade o meu cliente era um doleiro proprietário de uma “rede de lavanderia”. Agora descobri porque ele me contratou ao invés de acionar a polícia. O PC Júnior teve a quem puxar. Porém resolveu precocemente entrar no mundo do crime. E dando uma foda de um milhão de dólares em seu próprio pai. Que moleque filho da puta. Aí pensei... Subtrair dinheiro de doleiro, passar a perna na máfia e em trombadinha de berço, não deve ser nenhum pecado. Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Na verdade, eu nunca pensei mesmo em entregar a grana para os sequestradores.
Resolvi ligar para Angélica Zuleika pedindo ajuda, mas ninguém atendia no número que ela me deu . Então resolvi ir até a banca de jornal para encontrá-la. Quando cheguei lá, dei de cara com várias viaturas de polícia e uma ambulância. E também com um inspetor corrupto que trabalhei junto na delegacia de homicídios. Ele estranhou a minha presença no local e veio falar comigo. Eu disse que eu estava ali para rever uma velha amiga. O inspetor me levou até a ambulância para ver um corpo que estava coberto com um plástico preto, em cima de uma maca . Quando vi que o corpo, que era o de Angélica Zuleika, tive vontade de chorar. Mas consegui segurar a onda. O inspetor desconfiado fez a tradicional pergunta:
- Você reconhece este corpo? Detetive Anderli.
Eu, para não me complicar, disse que não conhecia aquela mulher. Ele insistiu na pergunta:
- Não conhece mesmo?
Eu repeti não, com a voz meio engasgada. E em tom irônico, ele falou:
- Eu jurava que esta mulher, com a garganta cortada por uma navalha, fosse sua amiga de longa data. Meu caro colega! Ou melhor... Ex-colega!
Balancei a cabeça negando e contra ataquei:
- Esta mulher, pelo corte na garganta, foi vítima da máfia Siciliana. É a máfia que você tem que investigar. Por acaso, você tem colhões para isto? Seu policial de merda.
Ele me mandou pra puta que pariu , e se afastou cuspindo marimbondos. O meu plano de sequestrar de verdade o garoto e levá-lo para casa de Angélica, foi por água abaixo. Agora, eu teria que blefar como o PC Júnior. Pegar a maleta no escritório, me desvencilhar do segurança do doleiro quando chegar à banca da Estação e também driblar os homens da máfia Siciliana que certamente já estavam no meu pé. O dia foi pesado... O melhor que eu tinha a fazer agora era ir para casa e descansar. E foi o que eu fiz, porém antes de dormir, entornei duas doses de uísque pela goela abaixo.
Terça feira, oito da matina, sentado no sofá, orando para o meu São Jorge enquanto o doleiro milionário não chegava com a maleta de dinheiro. Eu jurei que, se eu saísse dessa com vida, daqui pra frente só iria me envolver com caso de infidelidade. Viva o corno!
Nove horas em ponto, o doleiro chegou com a maleta, acompanhado do seu segurança, como eu já previa. O segurança foi dirigindo o carro até o local onde eu deveria deixar a maleta com a grana. Soltei do carro e tive a sensação que estava sendo vigiado durante o percurso até a banca. Para a minha salvação, um taxi parou bem ao lado do local onde eu deveria deixar a encomenda. Num lance de destreza, abri a porta do taxi, apontei minha arma para cabeça do motorista e ordenei que ele pisasse fundo no acelerador. Assim consegui fugir do segurança. Mandei o motorista tocar o carro para a rodoviária. Chegando lá, abri a maleta, tirei um maço de notas de cem e entreguei para o motorista do taxi. O camarada quase enfartou quando viu a grana. Passado o susto, o motorista me desejou boa viagem e partiu em velocidade, sem olhar para trás. Peguei o primeiro ônibus que apareceu, e adormeci no banco sem se preocupar com o destino final da viagem.
Tempos depois, enviei uma carta ao meu cliente para agradecê-lo por ter me contratado e dizer que ele soube educar bem o seu filho pródigo. Os quinhentos mil dólares que seria da velha Angélica Zuleika, distribui entre as putas do bairro do Bom Retiro. Os outros quatrocentos e noventa? Estão bem guardados em um paraíso fiscal.
- Infidelidade? Detetive Anderli, ao seu dispor!