Sem meia, sem teto...sem nada
Bené acordou 4h da manha. Rotina incomum para uma criança de apenas 10 anos, mas ele é apenas mais menino preto, pobre e favelado. Para essas invisíveis criaturinhas, o trabalho é uma perversa e vital rotina.
Com a mãe solteira e diarista doente, cabe a ele, não só prover o sustento do barraco, como também cuidar dos afazeres domésticos e de seus quatro irmãos menores.
Antes de ir para o trabalho, deixa a casa arrumada e um pouco de feijão, feito apenas com água, sal e osso, para toda família.
Bené tem um plano especial nesse dia. Precisa faturar um pouco mais, na sua ardua profissão de engraxate. Ele sabe que no Natal o "bom velhinho" não tem tempo para chegar na periferia.
As cartas dos irmãos foram feitas com antecedência e quase que se repetem todos os anos.
João, de seis anos, pediu uma bola. Por que toda criança pobre sonha ser um jogador de futebol e não um médico ou, melhor, um poeta.
A Maria, de oito, quer uma bicicleta, que viu na televisão da patroa da mãe, quando foi ajudar a fazer a faxina. Vai ter que se contentar com uma boneca de pano. Bicicleta, nem pensar. Bené teria que vender o barraco, para lhe atender.
O Cosme, de nove anos, não pediu nada. Ele também trabalha, mas a família não sabe onde e o que faz. Ele parece se virar bem sozinho e até tenta ajudar no sustento da casa, mas gasta muito com coisas de rico: tênis, roupas e comida. Fica longe de casa por dias e nos raros momentos que volta pra casa, algumas vezes bem machucado e assustado, recolhe-se, no único cômodo do barraco, entre soluços e xingamentos. Parece que todo ódio do mundo, habita à cabeça dessa indefesa criança.
Felizmente Emanuel, de apenas seis meses, ainda não aprendeu a pedir. Mas deve ganhar fraldas de pano.
Para ele mesmo, Bené não vai dar nada. Até pensou em comprar uma meia nova, imaginando que, quem sabe, o velhinho da televisão lembraria dele nesse natal. Mas depois que virou adulto, com apenas dez anos, parou de sonhar, de acreditar em "bons velhinhos" e até, sem saber, virou ateu, graças ao deus só dos visíveis.
Jessé Ojuara - 31/12/22