Mainha (dona Regina Maria)
Mainha deixa o leite ferver até subir. Subir até perto de derramar da panela. Sempre completamente envolvida nos afazeres de casa, concentrada em tudo o que faz.
Mainha não aguenta quando o leite derrama, ela tem que limpar todo o fogão. Minhas lembranças mais vivas são as de menina. Lembro-me bem… Ela tinha que deixar o fogão, IMPECAVELEMENTE LIMPO. E queixava-se de si para si: “Regina onde você está com a cabeça”. Achava essa autocobrança interessante e bonita. Era como se estivesse a chamar atenção a si própria e ao mesmo tempo consolando-se. Como quem dissesse: “Regina minha linda, minha amada menina, preste atenção meu amor”…
Mainha faz tudo ao mesmo tempo: lava roupa, faz comida, arruma a casa… É uma mulher gigante… E quando descansa, faz pano de prato, coador, barra de calça… Mainha… Tem dias que lava roupas quase limpas porque não gosta de ficar parada: “cabeça vazia é oficina do demônio minha filha”.
Tem dias que varre o quintal de um modo como se fosse assoalho. Retira aquelas pequenas plantas de canto de parede, esfrega a parte mais lodosa e depois diz: “agora, sim”. Ficava da janela observando a ligeireza dela. E quando estou com ela, em férias, fico comovida. Porque parece a mesma mulher de quarenta anos atrás. Sempre disposta, apesar dos cabelos brancos e da pele amadurecida.
Vez por outra ela solta um aforismo próprio, uma frase filosófica. Sim mainha é filósofa, só não tem o diploma, mas é. E é socióloga também. Diz coisas que me deixam pensativa, só não consegui entender em tempo… Mainha, como sinto saudade de suas palavras soltas, que ficaram em mim.
Uma tarefa difícil ser mina mãe... Vida que começou aos cinco anos na lida com roça. Aos cinco anos já extirpava porcos na terra de minha avó e do meu avô. Lá, todos os filhos trabalhavam, para sustento da casa e para vender a metade da produção na feira livre, na cidade da região. Quando conta essa história, fica com o olhar longe, como se estivesse a rever a cena. Depois diz: “Vai cuidar da vida mulher”.
Percebi desde cedo que mainha faz uma autoconsolação toda vez que se lembra de alguma coisa que, de algum modo, a maltrata (ou maltratou)… Mas não fica triste, só não gosta de ficar parada rememorando.
Mainha olha o céu e diz: “não dá para lavar roupa hoje”, depois, passados uns minutos, ou uma hora, chove. Quando em criança acreditava que ela era uma espécie de profeta. Hoje eu tenho certeza. Também é, minha mãe, muito amorosa, mesmo que não seja dada a abraços e beijos. Os beijos de minha mãe são na alma. De espírito para espírito. Tão tola fui… Pensando que o tempo passaria lento… Qual nada, passou muito rápido e hoje, gostaria de ter sete anos, para poder dize-lhe tudo isso, porque na época não conseguia, meu léxico era bastante reduzido e, muito mais, meu discernimento do valioso ouro que estava ali, tão perto de mim, das minhas mãos.
Mainha sabe de tudo e sabe tudo, mas é muito humilde. Muito. Suas teorias sobre a vida, o sofrimento, o amor, são muito bonitas e melancólicas. Penso que todo filósofo seja um pouco melancólico. Talvez porque a sabedoria pede que nunca se abra mão do verossímil.
Solineide Maria
(escrito em 2020)