Mo gbagbọ ni opopona wa (pequena crônica antropológica)

(Mary Douglas em seu "Pureza e Perigo" me levaram a escrever isso; antes, porém, quero dizer, um tempinho atrás, eu já acreditava que a não-casualidade da vida implica às pessoas manterem atitudes que têm raízes em cultos ancestrais. Dito em menos e mais claras palavras: a hereditariedade, somada à tradição de algumas sociedades, leva as pessoas a manterem um rito [ou conjunto deles] vivo. A palavra chave [ou antes uma entre meia dúzia delas] que eu citaria agora é "agrupamento": de pedras, pessoas, objetos que atendem a uma função dentro de um conjunto [note-se aí outra palavra para agrupamento] de ritos que precisam ser mantidos, porque assim reza a cartilha tradicional dessas sociedades. [Os experts em condução de pesquisas acadêmicas em nível de pós-graduação stricto sensu aconselham os neófitos a "fecharem" seu tema de pesquisa em um recorte bastante específico, para evitar digressões e perda de foco etc. Ora, vou tentar fazer isso aqui.)

 

Eu olhava um pouco um colar (esse mesmo aí, da foto, que Você já deve ter visto) de minha mãe e comentei com ela que deve haver alguma tribo africana que explique um colar como esse da seguinte forma (considere-se, pois, um cenário, como o que segue):

 

Tive de esperar até o 11º dia para que o líder da tribo resolvesse explicar o porquê de eles usarem um colar feito de pequenas peças ora arredonda, ora cilíndricas, feitas de madeira e ossos de animais. Eles levam a sério o tempo em que uma visita (não importa se estudante de Antropologia, Doutor na área ou mero turista) passa pela tribo. Para tanto, contam com um período cíclico de onze dias e onze noites para terminarem suas narrativas que relatam sua cosmologia. Isso, para mim, pareceu algo bastante condizente com o que Lévi-Strauss dissera em O Pensamento Selvagem. Os nativos não carecem de um método científico, jamais. Muito pelo contrário. Ao sistematizarem a exposição verbal de uma narrativa (somada a alguns rituais de dança, cantos e momentos de silêncio em que olham para o chão até elevarem seus olhares para as estrelas) em um período de onze dias isso deixa claro que eles mantém um tipo de método próximo de uma ciência, em que o tempo necessário para se relatar a origem e o estado atual de sua cultura simplesmente obedece a um sistema (arrangement) propriamente dito. Há uma estrutura (complexa) por trás desse sistema. Eu fiquei maravilhado. O intérprete explicou que cada peça do colar representa uma faixa etária e, por conseguinte, uma geração de antepassados. E que eles usam esse colar porque isso os mantém em sintonia com seus antepassados e assim perpetuam esse costume desde tempos imemoriais. O intérprete finalizou esse relato com a frase em Iorubá: "Mo gbagbọ ni opopona wa" ("Eu acredito em nossa estrada"). Eu pedi desculpas porque não pude conter as lágrimas. Eles me olharam com ar de espanto. Raramente alguém chorava entre eles. E me rodearam. Num círculo que passava uma sensação fortíssima de acolhimento e humanização.

 

Esse relato bem poderia ser real – não sei por que não o é. Pois ele tem uma base bastante comum. Ele, por si só, é uma espécie de rito.