Cheiros e texturas
Uma das passagens mais célebres da literatura universal é quando o narrador de Em Busca do Tempo Perdido degusta uma madeleine mergulhada no chá e sente-se invadido por cenas da infância. Se em Proust o paladar foi o gatilho da memória, para mim são o olfato e o tato que me remetem, por vezes, para meus primeiros anos.
O aroma do café com leite, por exemplo, é uma potente máquina do tempo a me levar para a cozinha da vovó Linda, minha avó materna. O engraçado é que, quando criança, eu não era fã do café com leite, mas mesmo assim achava maravilhoso aquele cheiro, pois era aroma de casa de vó: cheiro de carinho, de cuidado.
Havia ainda, naquela acolhedora casa em Rincão Vermelho, uma outra fragrância que até hoje não consigo identificar, e que igualmente me parecia única, deliciosa. Talvez tivesse a ver com os crisântemos do lado de fora, ou talvez fosse apenas o prazer de estar lá que me despertava os sentidos.
A cozinha tinha ainda um alçapão a um canto, sob o qual o vovô Guilherme guardava deliciosas Minuanos – e, aqui, entramos no reino do paladar proustiano: acho que nunca mais tomei refrigerantes tão deliciosos quanto aqueles.
Meu passeio no tempo ficaria incompleto sem a sala. Uma sala comum, não fosse por duas coisas: a uma parede, logo acima da ponta do sofá, havia uma pequena natureza morta desenhada, muitos anos antes, pela minha mãe (onde terá ido parar aquele quadro?); e, na porta que dava para uma das varandas, os vidros pareciam feitos de pequenas rendas.
Se fecho os olhos, ainda sinto meus dedos deslizando por aqueles vidros. Sinto a textura, que se desenhava na minha pele quando eu pressionava um pouco mais forte. Sinto a beleza que eu via neles.
Despeço-me dessa viagem de memória, ainda de olhos fechados, sentindo as cócegas da barba por fazer do vovô, quando nos cumprimentava na chegada e na despedida...