A GOTA
É quase impossível relembrar os tempos da universidade sem que venha junto à memória as noites de chuva que nos isolavam no ambiente acadêmico. O prédio era razoavelmente afastado da cidade, além do que, naquele tempo dos humilhados esperançosos por exaltação, não havia ônibus e poucos alunos tinham uma condução decente para que pudessem chegar em casa sem tomar uma boa ducha de água de nuvem. O jeito era esperar o mal tempo passar.
Decidi sentar na varanda, sentindo os respingos trazidos pelo vento da tempestade. Coloquei a mochila sobre as pernas enquanto dirigia minha atenção para uma pequena gotícula de água que repousava sobre as folhas de uma orquídea violeta. Segura em um vaso, havia acumulado aquele pequeno líquido durante um momento onde a fúria da tormenta ultrapassara o convencional. Ainda era possível ouvir os trovões de raiva, mas agora estava um pouco mais calma. Sob a superfície vegetal, o líquido forma uma espécie de domo, onde o interior se assemelhava a nada menos que um mundo subaquático minúsculo.
Enquanto fitava a pequena forma da água, pensei em como tal aleatoriedade universal fora conduzida até esse resultado: uma pequena esfera de água. Lembrei das aulas das ciências que nunca fui capaz de compreender muito bem na minha juventude: biologicamente falando, a folha tinha alguns filamentos que fisicamente não rompiam a tensão superficial da água. A ciência era fascinante e ao mesmo tempo, paradoxal: ainda que a água fosse importante para a planta, a própria planta mantinha a gota em um ponto onde ambas coexistiam perfeitamente, sem que uma fosse devorada pela outra.
Pensei ainda em, se aquele mundo aquaplanista seria possível abrigar vida inteligente o suficiente para que, se não conseguissem se comunicar com as criaturas de fora do domo, sustentassem pelo menos discussões acerca da gota ser plana ou redonda. Sim, eu sei, é um pensamento idiota. Contudo, acho um crime universal terrível que não tenhamos outra civilização no universo capaz de debater sobre os limites da racionalidade e da convicção de seres vivos pensantes diante de informações óbvias.
Diante de todos os conceitos da física existentes, o do tempo-espaço foi o que mais me deixou deprimido. A única expansão possível para aquele pequeno universo de átomos, moléculas e tardígrados (sim, eu sei que eles também vivem lá) era, cedo ou tarde, ser deslocado pelo vento ou gravidade até desprender-se da folha e atingir o solo em um cataclismo responsável por enviar todo o resto de matéria para o espaço ao redor, enquanto um pouco da matéria restante evapora naturalmente. Rio ao pensar que é por essas e outras que costumam me chamar de “Carl Sagan do quarto período de sociologia”. A partir dessa nomenclatura, resta-me apenas batizar tal fenômeno de “superaquanova”.
Ao som do sereno de uma chuva mais calma e diante das minhas contemplações acerca daquele mundo que se mostrava cada vez mais fascinante a cada descoberta, percebi que havia descuidado do meu. Uma das zeladoras cumprimentou-me sorridente, enquanto retirava o vaso do lugar:
- Nossa, esqueci de retirar isso daqui. - mencionou sorrindo – essa aqui já foi regada o suficiente por hoje.
Na física do movimento, a gota acabou indo ao chão, e o tão fatídico evento da “superaquanova” havia acontecido assim, em poucos segundos.
Refleti comigo mesmo se, da mesma forma que um dos seres da pequena gota de água viu sua existência ser dizimada simplesmente porque uma faxineira do mundo exterior moveu uma planta de lugar, nós, simples humanos, não poderíamos um dia vislumbrar o fim de nossa existência por algo cuja a proporção transcende nosso conhecimento de poder e ação. Há predestinação, ou apenas casualidade? São questões que volta e meia, ainda me tiram o sono. Daquela noite só lembro que, pouco antes de submergir naquela que poderia ser a crise existencial mais súbita e profunda da minha vida, um colega ofereceu carona em seu carro. Íamos com outros da turma até um bar, comer algo para fechar bem o dia. Aceitei o convite, fomos, e aquela foi uma das mais divertidas noites do nosso ex-grupo da universidade.
Não sei se vivemos em algo parecido com aquela gota, mas com um bom trocadilho, seria uma perda de tempo não aproveitarmos cada tempinho antes que uma zeladora cósmica antecipe nosso processo de “superaquanova”, ou em outras palavras, seria a gota d'água.