Croniquinha linguística VI

– Professor, estou muito cético...

– Mas cético pede um complemento, não?!

– Sim, sim... Você já me ensinou. A verdade é que estou cético com a crase...

– Com o sinal ou com o fenômeno?... Porque o fenômeno...

– O senhor vai me dizer que o fenômeno não depende de nós! Não é assim? Duas vogais iguais, em sequência, tendem a ser pronunciadas uma única vez...

– Ótimo... Está aprendendo e muito! Na fala, fazemos crase toda hora, não é?

– Sim, sim... Pessoa amiga soa pessoamiga, chefe ingrato vira chefingrato... E por aí vai...

– Você está ótimo. Chegou a a Bahia... Vira Chegou à Bahia, na escrita... E vêm exemplos e exemplos...

– Mas é aí que fico cético... Chegou à Bahia, com o sinal da crase. Veja que estou falando sinal da crase, para indicar que o acento é que indica o fenômeno dos dois aa que se juntam. Mas pra que esse sinal, se sem ele digo a mesma coisa e todo mundo entende? Isso é pra complicar... É coisa de gramático pra fazer a língua mais difícil?

– Não, não... Gramático não tem esse poder todo... Mas te digo que quem inventou foi sábio...

– Como assim?

– É que esse sinalzinho é danado de útil...

– Exemplificando!...

– Claro, claro... Você talvez tenha certa razão. Chegou à Bahia, em tese, diz o mesmo que Chegou a Bahia.

– Em tese?

– Sim...Retire o sinal... Você poderá estar dizendo que ALGUÉM CHEGOU À BAHIA ou que A BAHIA CHEGOU... Se há um show, e os cantores baianos aparecem, alguém pode dizer AGORA CHEGOU A BAHIA... Viu que o sinal marca se o termo é ou não sujeito? Quer dizer, ele indica os dois aa e tira a ambiguidade. Percebe?

– Verdade...

– O sinal da crase é clareador... Quer mais exemplos?

– Esperando...

– Compare A TARDE VEIO RADIANTE com À TARDE VEIO RADIANTE... No primeiro caso, surge uma tarde bonita, de verão. No segundo, alguém chegou no período da tarde. Fácil, não? Cético?

– Menos, menos...

– Já pensou nas rimas?

– O que tem a ver?

– Os poetas costumam querer rimar... Eles decidem, né? E às vezes precisam inverter certas construções e, para não prejudicar o sentido, usam o sinal da crase, como em... estou pensando...

– Em?...

– Acho que um conflito é vão.../ Aqui ou lá no Oriente: / Se à China vence o Japão / Ou nós, o nosso oponente...

– E daí?

– Inventei a quadrinha... Sem pretensões... Não repare... A minha ideia era dizer que O JAPÃO VENCE A CHINA, mas, se pusesse nessa ordem, eu não conseguiria rimar com a palavrão VÃO, do primeiro verso... Então, o Japão vence a China transforma-se em À CHINA VENCE O JAPÃO... Sem o sinal da crase, o vitorioso seria outro. Entendeu?

– Acho que sim... Foi colocada uma preposição antes de A CHINA, o que implica...

– Que não é sujeito da oração... Aprendendo muito o garoto!!! Vá procurando exemplos... Toda hora aparecem. Às vezes, a crase indica mesmo a mudança de sentido de um verbo. Quer ver?

O CARTEIRO ENTREGOU A VIZINHA é diferente de O CARTEIRO ENTREGOU À VIZINHA... Percebe?

– Sim... No primeiro caso, ele delatou... No segundo, ele entregou uma mercadoria... Acertei?

– Perfeito. Muito cético?

– Cético?! Eu?! ...