Pessoas, palavras, passados.

Fico pensando se tudo isso não é só uma construção, uma vontade que parte da mesma fonte que vem o choro de birra da criança que pede pra ir pra fora, mas a mãe não deixa, pois já tá tarde. Da negação do luto, da não aceitação, das coisas que fogem.

Estático, mas girando no próprio eixo. Ando remoendo a mesma coisa, no mesmo lugar, mas me mexendo pra lá e pra cá. Sinto minha escrita menos afiada, minha cabeça mais desorganizada, inquieto, inquieto.

Eu queria mesmo falar de outra coisa, queria fazer que nem os cronistas de verdade, que dissecam o léxico, a barraca da feira, a lista de compras, a agenda telefônica (que nem naquele de Rubem Braga) mas não, eu sempre falo de você quando falo dos pássaros, do tempo, das rimas pobres, dessa dor que eu sinto, disléxico.

Eu juro que eu tinha pensado bem pensadinho em algo pra escrever, mas aí esqueci enquanto atravessava a rua, sério. Sigo sem existir.

Existir surge do latim "ex+ sistere" ex, é "trazer algo pra fora" e sistere, "se colocar de pé". Ou seja, existir quer dizer "ficar em pé pra fora" Mudança, abandonar um algo em troca de outro algo, se posicionar no mundo. Tudo isso é complicado, ando errado nisso, no viver as coisas como devem. Quando não, já estou me deslinearizando de novo.

Já ouvi que se você esquece alguma coisa, é porque nem era tão importante assim. Mas não sei, COMO QUE VOU SABER SE ERA IMPORTANTE OU NÃO, SE EU ESQUECI?

Poderia ser a piada mais engraçada, a anedota mais torpe, ou a situação mais absurda, dessas que a madame abaixa o volume da TV pra ouvir, e termina com um "Que coisa, viu" ou que os caras trovejam entre uma cerveja e outra usando os adjetivos mais tortos possíveis, não importa, cairá no limbo triste das coisas não lembradas.

Outro dia falava sobre isso com alguém, sobre como a memória escapa. Lembro-me de pedacinhos de memórias lá de quando eu era mais novo, dum banho dentro de uma bacia, da casa na vila, de me arrastar pelo chão ainda menorzinho e doer os pés, de demorar pra largar a mamadeira e mãe ter que mentir dizendo que alguém levou, do sorvete que eu gostava quando era criança, que na verdade era picolé...essas coisas.

Aliás, essas coisas são a única garantia do meu passado, mas não era disso que vim falar. (Ainda)

Lembrei!

Vim falar do presente.

Gírias. Esses coloquialismos colocam a gente num tempo e espaço restrito. Isso surgiu, pois percebi que as vezes me pego falando um idioma tão específico com meus amigos, que sem dúvida alguma, daqui a algumas décadas as palavras serão apenas resquícios de uma civilização morta. Se não morta literalmente, ao menos em espírito de tempo, aquela palavra em alemão lá que os teóricos gostam de usar. A maioria dessas coisas são resquícios quase impossíveis de documentar, marcas que só a oralidade da conta. Por exemplo, no internetês você pode falar que não gosta de algo apenas dizendo "CURSED" Uma coisa é estranha? CRINGE! "Mano" e "Papo reto" vem do carioquês "Galado" e "Boe" só natalenses vão entender.

E aí minha mente se desdobra, pensando o mundo de palavras novas que existem unicamente pra documentar coisas específicas. Meu tio costuma ser contra essa ideia, a de que "na minha época isso, na minha época aquilo". "Minha época é o agora" diz ele, cortante

Talvez seja mesmo, mas penso que a língua é que nem o passado; uma experiência colateral, uma fotografia borrada, que vai sumindo pra dar lugar a outra coisa entre o novo e o velho. E além disso, assim como o tempo, a língua é um pedaço de matéria capaz de moldar-se ao outro, na verdade é um som que só existe pra ter alguém que o escute, né? Ou então, segundo o provérbio iorubá do Clã dos caçadores: “um caçador só é um caçador quando tem pelo que e por quem caçar”

E é aqui que eu volto pro início, nessa mania elíptica de escrita. Na verdade, eu acho que crônicas são isso, a maioria mira lá fora, mas pra falar do próprio umbigo. Preciso achar o meu pelo que e pelo quem, já que sejam as palavras, o passado, ou as pessoas, tudo isso ocupa espaço. Uns mais, outros menos, mas nenhum desses pode ocupar espaço demais, se não nos impede de existir, permanecer de pé.

Deve ser isso que me falta.