Tudo que cabe em mim
Não só a roupa apertada em meus quadris sofreu o relaxamento nos fios quando obrigatoriamente consegui que a passasse por eles. Aliás, era só o começo de uma nova teoria que não se enquadrava em áreas específicas do conhecimento, a não ser do meu. Uma conclusão de que a idade perdia prestígio ao justificar que o sedentarismo deixara meus quadris volumosos. De certo, ninguém iria até a lua com essa descoberta que me alivia da própria culpa. Foi esse o último instrumento que coube em mim, mesmo não cabendo antes dessa reflexão. Vi-me como uma cientista, detetive ou analítica que cheirava, tocava e devorava as cenas de minha vida. Mania de guardar tudo que me interessa, sendo meu ou não. Isso partiu desde minha infância quando insistia que a rua cabia em minha ansiedade para brincar nela depois da escola, apanhar os feijões entre os calçamentos montanhosos e desiguais da rua Richomer Barros, quando eram batidos por um conjunto de homens e varas e um dançar sintonizado ao som dos assobios e ao sol que secava as palhas.
Cabia em mim, os carros de bois que passavam no fim da tarde, acenando para um futuro que não os deixaria passear mais, porém, não sabíamos disso, e só queria escutar o ranger da madeira pesando sobre aquelas rodas grandes. Sim, não traço aqui uma ideia literária que convença o leitor a ler os melhores livros, mas creio que antes disso, é preciso que leiamos as coisas, foi isso que fiz. Por isso, fortaleço minha ideia sob uma ordem reflexiva, talvez estranha quem sabe. Mas, preciso descrever como as coisas cabiam em mim, é para isso que as palavras servem – para explicar e complicar tanto para quem escreve e uma porção de confusão para quem se habilita a ler algo assim. Quando as roupas me serviam e passavam direto, sem sofrimento, entendia que tudo era meu e se adequara ao meu mundo. O banho de chuva que me fazia fotografar aquela sensação como uma obrigação sentimental de guardar os pingos que doíam na barriga seca e a dorzinha nas pálpebras no aumentar dos pingos. Não só isso, mas a toalha que minha mãe sacudia em meus peitos depois do banho de chuva. Preferia sim, depois da chuva aquele ritual que nos fazia ouvir o som do violão do meu pai, as velas acesas e suas histórias de caminhoneiro atravessando o sorriso orgulhoso de minha mãe.
Cabia em mim, mais do que a fome que insistia no café da manhã depois de comer apenas uma banda do pequeno pão que meus pais ganhavam da dona da padaria. Quase sempre eu ia os pegar e via o homem pincelar a folha de pão doce com aquele mel disputado pelas abelhas e pelos meus olhos. Tudo aquilo era meu e cabia direitinho em mim. A ida e a volta, o andar pela praça e o voo dos pardais que pareciam se incomodarem com os gritos que dávamos para assustá-los. E eu fazia tudo pensado, se eu ia contribuir com grandes invenções, sinceramente não sabia, mas sabia que tudo que via era preciso sentir, e nunca mais esquecer. Eu fotografava sim e me sentia na aula de ciências escavando o chão do quintal, roubando as mangas do vizinho razinza, contando o tempo que os beija-flores pairavam lambendo as flores cheirosas do pé de andu que tinha ali. Cabia em mim como as roupas não me cabem mais, e talvez caiba, se eu comprar um número maior, por que as roupas como tudo que cabia em mim, mudaram demais, e sei que preciso me adequar ou elas a mim. O fato é que meus quadris rebolam menos apesar do contorcionismo que faço para vestir-me do que minhas ideias, criatividade e conhecimento quando comecei a perceber que quem minhas ideias iriam sim levar o homem à lua, e muito mais porque ali nascia uma escritora.