IRMÃOS — PAUL KLEE (1930)
IRMÃOS — PAUL KLEE (1930)
NÃO HAVIA PENETRAÇÃO anal, física, de Paizão Coisinha nos filhos. Havia um festival de subjetividade carnal, concupiscente, copulativa, erótica. Paizão tinha plena consciência de sua condição de impermanência na tutela daquelas crianças que mantinha no colo, tendo com elas orgasmos ao infestá-las com o roçar de seu instrumento carnal insipiente, em seus rabinhos infantis. A libertinagem luxuriosa de um pai de família que buscava infantilizá-las, as crias, ao máximo, para que não tivessem crescimento mental e intelectual pertinentes. Desejava prejudicá-las o mais intensamente possível num menor espaço de tempo no qual estava a poder influenciá-las.
NÃO PODERIA CONTINUAR a estragá-las emocionalmente por muito mais tempo. A oportunidade de abrir seus caminhos para uma vida proba e digna, essa ele não considerava minimamente. Filhos e filhas não teriam a oportunidade de se apropriarem de seus próprios corpos, e criar uma condição de desenvolvimento, sem que tivessem muitas dificuldades emocionais para conseguirem isto. Se essas crianças tivessem a condição afetiva, sensível e racional abduzida por ele em suas sessões de pedofilia, elas não estariam secas, vampirizadas na afetividade, na sensibilidade e na razão que não teriam para desenvolver em si mesmas essas qualidades.
O CASAL DE PAIS PEDÓFILOS, não teria gerado, pela vontade dele, nenhum filho ou filha que pudesse se destacar no mundo, além das possibilidades comuns, próprias deles. Eles eram as estrelas do cinema daquela família de indigentes do afeto, da emoção, da empatia sem sentimentos de autoestima e respeito próprio e mútuo.
NÃO PASSAVAM, OS FILHOS, de bonecos e bonequinhas do papai e da mamãe. Teriam namorados e namoradas, casar-se-iam, teriam filhos e filhas tal qual eles tiveram. Mas jamais poderiam ter pensamentos próprios e ações motivadas que não fossem pelo mecanismo de autômatos, criados e crescidos para serem reproduções físicas e mentais de seus tutores, sedutores da covarde vaidade de vidas secas, vaidosas da vontade de não estarem motivadas a implementar, cada um, seu próprio destino. Exceto o comum.
EDUCADOS PARA SER, CADA um de sua fila de gestação, a reprodução de suas impossibilidades, de seus carmas sombrios, de sua truculência emocional, da cruel judiaria de uma malignidade estrutural da qual eram fanáticos serviçais. A psicologia de Paizão Coisinha e de sua mulher grande no corpo, mas mulherzinha na alma, não tinha problema em descer às profundezas. Eles nunca saíram delas. Eles não tinham as ferramentas da evolução em si mesmos, buscavam no impedimento da evolução dos filhos, roubar deles essa intencionalidade da qual eram extremamente carentes.
ESTAVAM EMPENHADOS EM roubar a alma, o cerne, a substância anímica de cada um deles, filhos. Talvez assim pudessem lograr eles mesmos, evoluir. Não havia neles respeito ao corpo, ao intelecto e ao espírito. Como poderiam habitar, os filhos, um corpo e um espírito que tivessem uma educação capaz de suscitar a vontade de evolução??? Queriam se apropriar do biopoder natural deles, de modo que não pudessem crescer em sabedoria e conhecimento pertinentes à prosperidade, no caminho do saber colher em vida o alimento da otimização de si mesmos. Do próprio progresso. A desordem mental deles não permitiria outra influência emocional, exceto a sentida pela rejeição.
A FORÇA DA IGNORÂNCIA, de seus traumas, da bagaceira que certamente foi a educação infantilizada de cada um deles, era tudo que tinham a transmitir à própria descendência. Não estavam preparados para ser eles mesmos, muito menos poderiam ensinar à prole como seguir um caminho que fosse diferente do deles.
ESTA NARRATIVA É MUITO difícil de se organizar. Tenho 75 primaveras. Tentei escrevê-la diversas vezes. Nalgumas delas consegui boas páginas de literatura porque logrei escrever laudas de confessional veracidade. Mas, só após inúmeras tentativas, depois de décadas de ensaios e iniciativas literárias frustradas, consegui formalizar estes parágrafos insuspeitos, verídicos, transparentes, honestos, confiáveis.
ESCREVER É UMA TAREFA não das mais fáceis. A contabilidade emocional é muito diferente da escrituração mercantil. Não temos o hábito de pensar a veracidade das motivações que nos animam. Não temos o hábito de ser educados para nos conhecer a si mesmos. Não somos seres dedicados a nos reportar a nós mesmos. Não nos detivemos na constituição histórica de nossa sexualidade. Somos controlados por um poder que está, há muito tempo, a exercer dominação sobre nossas faculdades de percepção da realidade. Nossos corações e mentes não exercem sobre si mesmos autocrítica. Por isso somos um povo explorado por interesses de orçamentos e sociedades secretas.
QUANDO TENTAMOS NOS viabilizar em compreensão de nós mesmos, conseguimos, maior parte das vezes, apenas a replicação das múltiplas instâncias de atuação e repetição de diferentes subjetividades outras, nas quais somos levados a reproduzi-las em nós mesmos, em meio a nossos familiares, nas instâncias sociais para as quais somos educados e orientados a nos repetir sem nenhum espírito crítico.
VIVEMOS TODOS OS DIAS experiências limites. Elas têm a propriedade de nos tornar mais de nós mesmos. Nossa “nadificação” se multiplica todos os dias. Não nos qualificamos em nosso dia a dia, à ultrapassagem da nossa conduta limitada por condicionamentos de há muito induzidos por terceiros: pais, professores, chefes, políticos, auditores, juízes docentes de faculdades, opiniões de vizinhas conversas de padaria, clubes, bares ou discussões sobre futebol. Raramente nos qualificamos na razão, no intelecto, porque nunca fomos orientados a pensar. Fomos educados por uma galera de primatas saídos das cavernas primitivas do paleolítico neandertal. Pensar não é agir conforme esperam os outros que ajamos. Ainda pensamos com a lógica do tacape.
O PENSAMENTO SOBRE NÓS mesmos é o mais difícil de afirmar, porque nosso narcisismo não nos permite admitir que estamos a mil milhas de chegar à compreensão do que fomos, do que somos e do que poderemos chegar a ser. Somos criados em meio às pessoas que aprendemos a respeitar porque não existem outras em quem possamos nos avaliar. Pessoas que nos cercam normalmente estão enfermas da educação do corpo, do intelecto, da alma, e não sabem disso. Nem querem saber. Não há tempo senão de investir no tempo da sobrevivência, do trabalho, do salário, na condução de ida e volta para ter o que comer. E um celular para se alienar diariamente mais.
OS TRANSTORNOS DOS comportamentos repetitivos nos fazem acreditar que estamos no caminho certo porque só conhecemos esse caminho. Não temos referenciais culturais que nos permitam uma comparação de procedimentos outros que nos poderiam conduzir à visualização de outros horizontes. Senão aqueles que a propaganda e as notícias dos jornais da TV nos sugerem. Nos unimos apenas para torcer pela hostilidade entre chutadores de bola. Somos enganados e aceitamos isso todos os santos dias. Todos os dias, nem tão santos.
A PAISAGEM SOCIAL dessa realidade me faz lembrar a criança que, sozinha, contempla a paisagem no quadro de Gauguin em que um menino bretão observa em um cenário, à esquerda do qual, está uma grande e sombria figura indefinida, que mais parece uma visagem sobrenatural, horrífica e tenebrosa. A paisagem que parece, à primeira vista natural, mostra-se com uma inclusão carregada, turva, ameaçadora. A naturalidade no larbirinto de Mãezona e Paizão apresentava-se, por vezes, igualmente tenebrosa. E seus filhos, meus irmãos, perplexos, num caminho traumático. Sem volta.
(P.S: ESTE TEXTO PERTENCE AO ROMANCE MULTIESTILOS "ONDE A LUZ DA LUA VEM BRINCAR").