A patroa branca
Dona Marisilia, já quase cinquentona, mãe de cinco filhos e viúva; o marido fora assassinado num bar, em uma discussão entre bêbados. Seu marido, o pedreiro Aroldo, deixara uma obra inacabada na rua de baixo, numa casa em construção, que quase fazia fundos com a sua própria. Nessa casa morava um casal de estrangeiros, com um filho.
O filho dos estrangeiros brincava com a filha mais nova de Dona Marisilia; tinham praticamente a mesma idade. Era a época em que se tratavam por negão, carvão, piche, macaco, alemão-batata come queijo com barata, alemão, batata, nazista, branquelo etc. Onde mora fulano? Ali, na casa da “pretaiada”. Os moradores criavam galinhas soltas, os terrenos não eram cercados e as galinhas botavam onde queriam. Todos tinham ovos e carne; era só sair procurando.
Com a morte do pedreiro Aroldo, dona Marisilia precisou trabalhar. Naquela época, “trabalhar” só era usado para designar o trabalho remunerado; o serviço de dona de casa não era trabalho. E dona Marisilia foi trabalhar lá na casa da dona Irma, alemã, branca, bonita, cujo nome era Irmgard, mas frequentemente chamada de dona Irma ou até dona Ema. Uma não entendia o que a outra falava, mas conversavam sobre tudo. Todas as segundas-feiras dona Marisilia ia limpar a casa da dona Irma, sua patroa.
Naquela época não se usava falar secretária do lar, faxineira ou diarista; era empregada. Dona Marisilia tinha experiência como empregada e sabia que quem manda em tudo é a patroa. Duas coisas dona Marisilia estranhou muito ao trabalhar na casa da dona Irma. Ela achava aquilo muito esquisito; nunca tinha visto em lugar algum.
A primeira estranheza era que a tal dona Irma, sua patroa, trabalhava junto com ela em tudo o que era para ser feito: tirar o pó dos móveis, aplicar óleo de peroba, passar palha de aço no chão, encerar à mão, com cera em lata etc. As duas faziam tudo juntas. Agora, o pior estava por vir.
Já no primeiro dia de trabalho, dona Irma deu café para dona Marisilia; ela, a patroa, já havia tomado o seu. Dona Marisilia sentou-se à mesa e viu que havia café, leite, açúcar, pão, manteiga e geleia caseira. Dona Marisilia sentiu-se tão pouco à vontade que só pegou café preto, mas dona Irma disse que era para pegar tudo. Então, pôs leite na xícara – sim, na xícara e não num copo -, comeu do pão com manteiga e geleia. Mas o pior ainda estava por vir.
A patroa participava de todo o trabalho e dividia seu tempo preparando o almoço: o filho chegaria faminto da escola. Quando o branquelo chegou, dona Irma chamou dona Marisilia para o almoço. Ela chegou à cozinha e ficou horrorizada com o que viu: a mesa posta para três e as panelas sobre a mesa de madeira grossa. Havia arroz, feijão, carne com batata e salada. E uma jarra com suco de pacotinho. Dona Marisilia não sabia o que fazer; ela nunca havia presenciado nada igual. Dona Irma fez um gesto para ela sentar-se e servir-se. Ela pôs um nada no seu prato e dona Irma disse-lhe para comer direito; quem trabalha precisa comer. E havia frutas como sobremesa.
Dona Marisilia não acreditava que estava sentada à mesa para almoçar com a patroa e, ainda por cima, comer bastante da mesma comida. Que gente estranha, esses estrangeiros branquelos!