Voar é preciso*

Curioso foi meu amigo não ter sido amado por não ser suficientemente triste. É preciso ser suficientemente triste pra amar alguém, pra querer bem, pra precisar de alguém, pensa o ex-amor dele.

Depois de idéia absurda assimilada, eu e ele rimos loucamente, apaixonadamente felizes, quando ele me contou. Rendeu ainda tantas gargalhadas essa história, que digo até sermos mais alegres pra amar sem sofrer. Porque pra amar, nem é preciso ser triste, muito menos suficientemente; nem é preciso esforço, é preciso só voar insuficientemente. Mas o tal do ex-amor nem acha. Disse que meu amigo precisava inadiável, indispensável, ininterruptamente ser triste.

Num desses domingos, sem nada pra fazer, o jeito foi eu dormir depois do almoço. Quis precisar do sono: preparei terreno: fui à praia, almocei almoço pesado, tomei banho bom, preparei rede, música de acalanto e livro chato (que é pra querer dormir mais do que ler). Dormi, dormi profundamente, e acordei irritada, como nunca acordo. Foi o mais falso dos sonos.

E do jeito que eu fiz com o sono, há quem faça com o amor. Poucos são os que amam de verdade, muitos são os obcecados: preparam terreno, querem o outro triste só pra ser o alívio quando o fraquejo chegar, só pra ser o jeito.

Aí foi que confortei meu amigo, convencendo-o da falsidade daquele amor triste. E comecei a falar, e comecei a contar que nem é preciso almoço pesado, enfado, música de acalanto, nem livro chato pra amar. Sozinho, quieto, o amor arranca sorrisos; em qualquer lugar, faz a gente se sentir na frescura de uma rede de tucum; faz a gente ver nos horrendos prédios que aprisionam a vista, os mais lindos projetos arquitetônicos. Faz a gente voar no tempo, ir pra lugares que a gente sempre quis ir, mas que sequer existem mais...

“Ontem eu fui pra praça do Centro, me lambuzei com algodão doce, brinquei de roda gigante, ri da pipoca enganchada no dente dele, rodei a saia do meu vestido de chita, dancei forrobodó no meio da rua, cantei, depois a gente...”

“Ué, menina, mas não faz dez dias que você está enfurnada nesta sala se acabando de trabalhar?”

“Eu estava, era?”

* Crônica originalmente publicada no site www.patio.com.br/cronica

Cristina Carneiro
Enviado por Cristina Carneiro em 26/11/2005
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