Crônicas Médicas - As marcas que deixamos
É assim que a gente descobre que, de alguma forma, marcou a vida de outra pessoa.
Era manhã de quinze de dezembro, um dia que não amanheceu muito legal: sonhos ruins me perseguindo, água vazando do ar-condicionado e molhando boa parte do meu quarto, e a barriga um pouco revoltada com o mundo. Além disso, uma carga enorme de conteúdo aguardava para ser estudada. Tudo se encaminhava para ser mais um dia cansativo na vida de um estudante de medicina.
Contudo, uma mensagem repentina mudou meu humor de um extremo para o outro. Era mensagem de um DDD 11, um número que eu não tinha salvo em meu celular, mas reconheci pela foto de perfil: tratava-se de um outro aluno do meu curso, um de meus veteranos. Abri a conversa que trazia duas mensagens, um áudio e um texto escrito “E aí, Vitor! Tudo bem?”. Dei play no áudio.
Demorei algumas palavras para associar a voz à pessoa que falava. Não se tratava de meu veterano. Era uma voz mais velha, mais áspera e bastante familiar, que dizia o seguinte:
“Olá, meu amigo Vitor Martins, meu amigo doutor. Eu estou aqui em outro hospital, muito feliz. Já estou almoçando e jantando sozinho, muita coisa mudou na minha vida. Em breve, gostaria de estar andando e te dar um abraço, mas, se quiser me visitar, venha. Ficarei muito feliz”.
Logo em seguida, um novo texto:
“Tô aqui no hospital e encontrei um paciente seu, pediu pra te mandar uma mensagem”.
Seu Wagner, paciente que sofreu com Guillain-Barré, amigo sobre quem escrevi minha última Crônica Médica, e que, há quase um ano, encontra-se internado, enfrentando as consequências da doença. Ao encontrar um outro estudante da minha faculdade, pediu para me mandar uma mensagem.
Há meses que não frequento o Hospital Regional, onde sempre conversávamos entre uma aula e outra, quando conseguia um tempo livre. Parava à beira de seu leito e ouvia suas histórias, acompanhava sua evolução e sorria com seu progresso.
Desde a última vez que conversamos, pensei inúmeras vezes em Seu Wagner. Imaginava seu estado de saúde, os riscos de permanecer internado por tanto tempo e me preocupava não mais com seu caso, mas sim com sua vida e com aquele homem para além da doença. Afinal, foi ele que, mesmo sem caminhar desde 31 de dezembro de 2021, devolveu-me ao caminho e aos propósitos que escolhi trilhar quando me decidi por me tornar médico.
Hoje, mais uma vez, ele tocou meu coração e me mostrou o resultado de se marcar a vida de alguém. O dia, que se iniciava ruim, ganhou cor e sorriso. Sua mensagem representou não apenas a simples lembrança de um velho amigo. Em vez disso, seu áudio simbolizou a verdadeira recompensa de levar a sério a profissão que escolhi: a gratidão e a certeza de transformar vidas.
Cada vez mais a frase de Antoine de Saint-Exupéry faz mais sentido: “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. Nunca fui, de fato, o médico de Seu Wagner. Ele, no entanto, é, definitivamente, o meu primeiro paciente. Bem, pelo menos o primeiro que vou levar para o resto da vida. Deixei um pouco de mim nele e ele, com certeza, deixou muito de si em mim.